Escravidão Volume I
Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares
Uma vez
um aluno me perguntou qual era o tema de história que mais gostava de ensinar.
Como para mim, ensinar não está separado de aprender, hoje, sem sombra de
dúvidas, o tema que mais gosto de aprender e consequentemente transmitir para
as pessoas é sobre a escravidão. A escravidão é o assunto principal da história
do Brasil e ponto. E, em um contexto que opinião parece ser mais importante do
que fatos - "em minha opinião" a escravidão é o fato mais importante
da história do Brasil. Vou buscar através desse texto demonstrar um pouco sobre
a importância desse tema.
Esse
texto será uma espécie de síntese, em forma de bate papo, do livro do
Laurentino Gomes, Escravidão Volume I, que é parte de uma trilogia de livros
sobre o tema. O primeiro volume lançado em 2019 fala sobre um período de 250
anos desde o primeiro leilão de cativos africanos registrado em Portugal em 8
de agosto de 1444 até o 20 de novembro de 1695, data da morte de Zumbi dos
Palmares. O autor fez uma pesquisa ao longo de seis anos, incluindo viagens por
doze países e três continentes em busca de relatos de viagens, crônicas, outros
documentos e de trabalhos já realizados de importantes historiadores e especialistas
sobre o tema.
Vamos lá...
Sabe-se
que a escravidão é um fenômeno praticado há milênios por diferentes
civilizações. Babilônios, romanos, chineses, egípcios, islâmicos, entre outros,
escravizavam pessoas. E antes de falarmos sobre a prática da escravidão em si é
sempre bom buscarmos saber a origem das palavras que usamos diariamente para
chamar pessoas e fenômenos. O livro busca demonstrar que existem aspectos de
natureza semântica relacionados ao tema escravidão. A palavra escravo, por
exemplo, tem sua origem na língua portuguesa da palavra esclave que por
sua vez deriva-se do latim slavus. Slavus ou eslavos. Eslavos é a
designação de povos brancos de olhos azuis da região dos Bálcãs que eram
grandes fornecedores de mão de obra cativa para o Oriente Médio e Mediterrâneo
até o século XVIII. Escravo até aqui eram brancos loiros, de olhos azuis.
E, seria
correto dizer que o povo africano foi durante mais de três séculos escravos do
povo europeu? Escravo é um substantivo ou adjetivo de um humano cuja condição
seria natural de cativo. O "politicamente correto" seria então o
termo escravizado, pois, no particípio do verbo escravizar denotaria uma
condição circunstancial - temporária. Um povo que foi temporariamente
escravizado por outro povo e não "naturalmente" escravo. Essas
sutilezas linguísticas são importantes e devem ser levadas em conta. Apesar que
determinados vocábulos já se incorporaram aos usos e costumes da língua
portuguesa e podem ser utilizados livremente por conta da compreensão dos
leitores. Mas, eu prefiro exercitar o "olhar atento" para essas
sutilezas linguísticas.
Após o
século XV e XVI com a ocupação europeia de novos continentes, novos
ingredientes foram adicionados à escravização de pessoas. Segundo a pesquisa de
Laurentino Gomes, entre esses ingredientes, está o regime de trabalho. Na
América, a escravidão se tornou sinônimo de trabalho intensivo em grandes plantações
de cana-de-açúcar, algodão, arroz, tabaco, café, mineração. Condição
equivalente à das máquinas agrícolas industriais hoje. A segunda característica
é o nascimento de uma ideologia racista que passou a associar a cor da pele à
condição de escravo. Segundo essa ideologia, o negro seria naturalmente
bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo,
"só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão"
segundo o historiador Alberto da Costa e Silva.
O livro
apresenta o que seriam características de escravo. Escravo como propriedade e a
origem da escravidão por inúmeros fatores, entre eles os cativos de guerra, os
não pagadores de dívidas, escravidão hereditária. Escravo como sinônimo de
estrangeiro ou de "o outro". Aquele que não pertence ao grupo social
dominante. Segundo Paul F. Lovejoy a escravidão é uma maneira de negar ao
forasteiro direitos, privilégios de uma sociedade. O próprio Platão defendia
que as cidades gregas não deveriam possuir escravos de origem helênica.
***
As
estatísticas demonstram que cerca de 12 milhões de africanos embarcaram para a
Europa e para as Américas. Cerca de 1,8 milhões morreram na travessia. As
expectativas de vida dos que sobreviviam à travessia eram baixíssimas. O
tráfico sistemático de escravos para o Brasil começou por volta de 1560, embora
se tenha notícia da chegada de cativos africanos em número pequeno por volta de
1538. O Brasil foi o país mais resistente e o último a abolir o cativeiro e
também o maior território escravagista. Recebeu cerca de 5 milhões de
africanos. Em termos de população negra ou parda, só ficamos atrás da Nigéria.
Contamos com uma população afrodescendente de 115 milhões de pessoas. A Nigéria,
país africano, tem cerca de 190 milhões. A Etiópia também na África tem cerca
de 105 milhões de habitantes e é o terceiro país com maior população africana
do mundo e segundo país africano com maior população negra. Ou seja, somos o
segundo país com maior população afrodescendente.
Segundo
consta exatamente no livro:
Hoje, sabe-se, com relativa
precisão, que 12.521.337 de seres humanos embarcaram para a travessia do
Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros, entre 1500 e 1867.
Desses, 10.702.657 chegaram vivos à América. Os mortos seriam 1.818.680. [...]
O Brasil, sozinho, recebeu 4,9 milhões de cativos, o equivalente a 47% do total
desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850. (GOMES, 2019, p.
255)
Dos 12
milhões de negros transportados durante os três séculos cerca de 40% a 45%
morriam na travessia. E os cadáveres eram jogados nas praias e rios.
Depositados a céu aberto. 15% faleciam nos três primeiros anos. Triste! E
nenhum livro conseguirá expressar as aflições dos cativos capturados. Essas
informações só são possíveis a partir dos, ou, do chamado Livro dos Mortos que
permite o cálculo assustador de 1,8 milhões de cativos mortos. Significa que
durante 350 anos, 14 cadáveres eram atirados ao mar todos os dias.
Por isso,
os navios que transportavam os africanos para a Europa e América são conhecidos
como tumbeiros ou tumbas flutuantes. Porque negro era comida de tubarão.
Os tubarões seguiam as rotas dos navios negreiros porque sabiam que corpos
seriam lançados ao mar. Tanto que o Atlântico se tornou um cemitério de
escravos. Morria-se de disenteria, varíola, febre amarela, de escorbuto, de
suicídio e de banzo. Banzo era um surto de depressão, muito comum no povo
preto, alguém que perdia o brilho no olhar, a vontade de comer e de viver.
Escravos que, em meio a surtos de
depressão (o então famoso banzo), tentassem fazer greve de fome eram punidos
com chicotadas e forçados a comer mediante o uso de um aparelho chamado speculum
oris – um longo tubo flexível de metal que os marinheiros lhes enfiavam na
garganta para que a comida descesse esôfago abaixo. (GOMES, 2019, p. 291)
Outro
detalhe muito assustador é a respeito do espaço nos navios negreiros. Cada
cativo tinha apenas dois metros quadrados, apenas o suficiente para esticar as
pernas à noite. Na ausência de sanitários, as necessidades fisiológicas eram
feitas dentro do próprio barracão que fedia a fezes e urina. Segundo relatos de
médicos portugueses os escravos seminus dormiam no chão mesmo e eram tratados
como gado.
Em 8 de
agosto de 1444 ocorreu o primeiro leilão de escravos em Portugal,
especificamente em Lagos, um vilarejo da região de Algarve. Foram vendidos 235
africanos, entre homens e mulheres. O registro desse primeiro leilão consta na
crônica escrita pelo biógrafo de Dom Henrique, Gomes Eanes de Azurara. Foi ele
que escreveu a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. O cativeiro
aparece nesse momento como oportunidade de salvação das almas do povo preto, de
retirá-los da barbárie e do paganismo segundo a visão do povo branco. Portugal
entre 1450 e 1500 já é o principal país moderno a ter uma significativa
população africana.
Você
sabia que foi nesse contexto que surge o tal "mercado negro"? Pois,
é. Mercado negro aqui são as feiras de compra e venda de escravos em Lisboa,
Évora, Lagos e Porto. Só mendigos não tinham escravos em Portugal. Escravos
eram vendidos em liquidação! Dados de presente, pedidos ao rei Afonso V para
serem levados para outros lugares como Alemanha só para serem demonstrado como
figuras exóticas e curiosas. Enfim, esse leilão de 1444 e o comércio de
escravos ajudou a financiar as viagens marítimas de descobrimento.
Toda
pessoa que passou pelo ensino médio já ouviu falar de Aristóteles, certo?
Aquele filósofo grego que veio depois de Sócrates e Platão e que ensinava em
Atenas, que foi professor de Alexandre, o Grande. Quem assistiu o filme
"Alexandre" de 2004 talvez se lembre, caso não se lembre das aulas de
filosofia ou história. Para Aristóteles há pouca diferença entre os
animais domésticos e a exploração do trabalho escravo, uma vez que "ambos
emprestam seus esforços físicos para satisfazer às nossas necessidades"
diria o filósofo. Na Grécia havia cerca de 70 mil escravos dentre os 155
mil habitantes no auge da civilização grega. Para Aristóteles a
humanidade se dividia em duas, os senhores e os escravos. E isso explica muita
coisa da trajetória da humanidade até aqui.
Mas,
outros homens também afirmaram essa ideia em outros contextos. Entre esses homens
estão Thomas Jefferson, aquele que redigiu a declaração de
Independência dos EUA. Jhon Locke, importante humanista e figura central
do movimento iluminista. Locke, inclusive, era acionista da Royal African
Company que tinha o propósito principal de traficar escravos.
Escreveu: A necessidade de procurar a verdadeira felicidade é o
fundamento da nossa liberdade. A verdadeira liberdade consiste em não
estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de um
outro ser humano. Dentre outros filósofos iluministas como David
Hume, Voltaire, Kant, Hegel que sustentam a ideia da superioridade do
homem branco.
Além de
toda uma sustentação filosófica há também uma sustentação teológica para a
escravidão de pessoas. A explicação teológica é a da Maldição de Cam. Em
gênesis capítulo 9 ocorreu um episódio onde Noé é visto nu e embriagado pelo
filho Cam ou Cão em algumas versões. Ao acordar da embriaguez, Noé amaldiçoa o
filho dizendo: Maldito seja Canaã! O livro "Economia Cristã
dos Senhores no governo dos escravos" escrito pelo jesuíta Jorge Benci publicado
em 1705 traz essa versão da escravidão como um dos efeitos do pecado original.
Os escravos pretos seriam herdeiros da maldição de Cam e aprovando Deus essa
maldição foi condenada à escravidão e cativeiro.
Mas,
falando sobre os iluministas defenderem a liberdade e ao mesmo tempo terem
ideias que justificaram a escravidão vamos trazer um conceito que os
historiadores chamam de anacronismo. Anacronismo consiste num erro de
cronologia ao atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos de
outra conjuntura. Ou seja, não dá para chamar esses filósofos de racistas
porque eram homens de seu tempo. Mas...
O livro enfatiza
também a questão do domínio intercontinental do islamismo após a morte de Maomé
no século VII e a escravidão como um dos pilares do Islã. Cerca de 12 milhões
de negros teriam sido escravizados através do Saara. E dentro desse processo
ocorre um tipo muito específico de cativeiro, a dos Eunucos, que
representam uma forma extrema de escravidão. Os eunucos, também citados na
bíblia, são homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos
genitais ainda na adolescência. E devido à falta de apetite sexual eram
designados a guarda dos haréns. Eram também tesoureiros, ministros,
conselheiros políticos e até comandantes militares. (GOMES, p.81)
O fato de
não terem herdeiros que pudessem reivindicar patrimônio ou status, tornava
esses homens uma forma mais conveniente de manter a ordem social. Segundo o
livro no século X havia em torno de 11 mil eunucos sendo 7 mil negros.
***
Você
sabia que muito antes do interesse pelas especiarias, a atividade econômica
mais importante da expansão portuguesa no mundo foi o comércio de gente? Porque,
muitas vezes, nas aulas de história sempre enfatizamos que um dos principais
objetivos das viagens marítimas era a busca por especiarias e metais preciosos
por conta da política mercantilista.
E uma das
figuras mais controversas da história das navegações foi o infante “Dom
Henrique, o Navegador”. Dom Henrique viveu entre 1394 até 1460 era tio de
Afonso V rei de Portugal na época do primeiro leilão de cativos. Dom Henrique é
conhecido como grande incentivador e mecenas das Grande Navegações, porém,
segundo o livro, sua experiência marítima se resumia na verdade a curtas
travessias no Mediterrâneo entre a costa portuguesa e o litoral da África.
Diga-se de passagem, não era versado em geografia, nem em matemática e não
tinha qualquer conhecimento em náutica. Na verdade, o mérito da expansão
portuguesa deve-se a Pedro, irmão de Henrique. D. Henrique teve a “sorte” na
verdade de ser um bom propagandista de si próprio como demonstra as Crônicas de
Gomes Eanes de Azurara. Há mais evidências de que ele foi, na verdade, mais um
grande traficante de escravos, o pioneiro e patrono do negócio de cativos
africanos segundo o historiador Stephen Bown. Dom Henrique morrera falido e
endividado, era um mau administrador dos seus próprios negócios.
É
importante, no entanto, desconstruir toda uma visão romântica das Grandes
Navegações e descobrimentos dos séculos XIV e XVI que teriam como motor o
simples gosto pela aventura sob a liderança heroica de Dom Henrique. Além de
toda uma ideia de combater os mouros e expandir a fé cristã na costa da África.
Havia sim esse espírito de aventura e zelo missionário. Porém a principal
motivação era a conquista de novos territórios, a espoliação pura e simples de
seus recursos, incluindo a escravização de seus habitantes.
Conta-se
no livro que ao chegar em Calicute na Índia, Vasco da Gama foi recebido com
desprezo e só quatro horas após o combinado pelo samorim, como é chamado o
chefe local daquela região. O monarca indiano teria considerado desprezível os
presentes trazidos pelo navegador. E um ato de truculência, por parte dos
portugueses, teria ocorrido na viagem seguinte sob o comando de Pedro Álvares
Cabral que havia acabado de passar pelo Brasil. Cabral levou balas de canhão
como presente aos indianos e atacou Calicute de forma impiedosa. A cidade
contava com cerca de 200 mil habitantes na época. Sob fogos dos navios de
Cabral seria a primeira aglomeração urbana litorânea da história a ser
bombardeada por canhões embarcados.
Outro
fato citado no livro foi a relação dos cavaleiros templários com esse processo
de expansão marítima e consequentemente escravização de pessoas. Nas cruzadas,
os templários tinham como objetivo proteger a terra santa e lugares sagrados de
Jerusalém e regiões vizinhas, além de dar segurança aos peregrinos. Para a
ordem eram recrutados membros e monges guerreiros da nobreza europeia com um
bom preparo militar. Os templários tinham conhecimento na área da astronomia,
da cartografia e da matemática. Tal conhecimento teria sido assimilado com os
árabes. Os templários também teria sido os primeiros banqueiros europeus da
Alta Idade Média. Porém, a estrutura dos templários teria começado a ruir em
1244 após a expulsão dos cruzados da Terra Santa.
O rei
Felipe, o Belo, da França mandou invadir sedes dos templários, confiscando
todos os bens, porém o lendário tesouro jamais foi localizado. Rumores da época
diziam que tal tesouro teria sido escondido em Portugal. Em 1317 o rei Dom
Diniz de Portugal deu acolhida oficial aos templários perseguidos na Europa,
alegava não terem cometido crime em território português. A versão
aportuguesada dos templários recebeu o nome de Ordem de Cristo. Os templários
portugueses, ou seja, a Ordem de Cristo estaria na vanguarda das Grandes
Navegações. Dom Henrique, por sua vez, sagrou-se cavaleiro da Ordem na Batalha
de Ceuta em 1415. (GOMES, p. 95)
Nesse
contato e conflito de culturas religiosas que vamos percebendo ao longo do livro
e da história propriamente dita, partindo da mistura de cristianismo com
islamismo, o livro traz outro acontecimento do século XV, mais precisamente em
1496 quando o rei Dom Manuel I manda expulsar judeus de todo reino português.
Os judeus que ficaram foram obrigados a se converterem ao cristianismo e
passaram a ser chamados de cristãos-novos. Esses homens tinha um nível maior de
instrução e também tinham maior poder econômico. Fernando de Noronha, por
exemplo, era um cristão-novo. Os cristãos-novos sempre foram um paradoxo na história
portuguesa e brasileira. Eram muitas vezes perseguidos e outra vezes anistiados
e recebiam determinados privilégios nos negócios.
E
sobre aquela que, do ponto de vista da história oficial é considerada a
certidão de nascimento do Brasil, a carta escrita por Pero Vaz de Caminha e
enviada ao rei Dom Manuel I em 1 de maio de 1500, comunicava a chegada de Pedro
Álvares Cabral à Bahia. A população em geral só teve conhecimento da carta de
Caminha em 1817 por conta da política sigilosa da Coroa portuguesa. Outra carta,
escrita em 1501 por Matteo Cretico um espião em Lisboa teria informado sobre a
“descoberta” do Brasil muito antes da carta de Caminha, chamando o Brasil de
Terra dos Papagaios. Essa carta é considerada o primeiro documento oficial a
respeito do descobrimento do Brasil a ter uma ampla divulgação na Europa.
Sobre a
população nativa brasileira, o livro discorre que ao chegarem na América, os
europeus e os escravos africanos trouxeram com eles moléstias desconhecidas
pelos indígenas como gripe, sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose,
lepra, sarna, febre amarela, e malária. A catástrofe foi tamanha que havia
cerca 3 a 4 milhões de indígenas distribuídos em centenas de tribos que falavam
mais de mil línguas e representavam uma das maiores diversidades culturais e linguísticas
do mundo. Em 1808 ano da chegada da família real no Rio de Janeiro, a população
brasileira era ainda de 3 milhões de habitantes. O que isso significa? Agora,
três séculos depois da chegada de Cabral a população brasileira já havia se
misturado drasticamente e era formada de brancos de ascendência europeia ou de
africanos e seus descendentes. Havia cerca de 700 mil indígenas, 20 % do seu
contingente original. Isso significa que, durante o período colonial, o Brasil
exterminou 1 milhão de índios a cada cem anos. E mesmo com a intervenção dos
jesuítas no processo de defesa da não escravização de indígenas é possível
observar que índios foram escravizados até o século XVIII quando foram
substituídos por negros africanos. (GOMES, 128)
Como não
dá para falar de tudo que há em um livro de mais de quatrocentas páginas, é
importante lembrar que estou fazendo apenas alguns recordes, destacando alguns
capítulos e trechos que em minha leitura considerei significativos. Um deles,
por exemplo, segundo relatos, em Luanda no ano de 1576, qualquer indivíduo, não
importasse a cor da pele ou a habilidade, passava a ser considerado branco tão
logo passasse a usar sapatos. O outro é que escravos transportavam europeus em
redes pelas ruas e estradas, o que talvez já tenhamos visto em algum filme por
aí. E também o significa de kilombo em Luanda. Que seria um campo militar ou
local de iniciação de novos guerreiros que no Brasil tornara-se sinônimo de
comunidade de escravos fugitivos – quilombos.
Nesses ritos de passagem, os prisioneiros mais aptos de suas guerras extrairiam
dois dentes dianteiros da arcada superior, origem do substantivo “banguela”. O livro
traz a diferença entre os negros ladinos e os boçais. Os ladinos como aqueles
que sabiam a língua portuguesa, tinham sido batizados e já passado pelo
cativeiro das ilhas atlânticas como São Tomé e Cabo Verde, locais considerados
laboratório do tráfico. E os boçais seriam os africanos recém-chegados que
nunca tinham tido qualquer contrato com a língua portuguesa.
Uma outra
característica dos povos africanos é que eles acreditavam que o desmembramento
do corpo impedia o espírito do morto de retornar à terra de seus ancestrais na
África. Então, cortar a cabeça ou os membros de alguém, antes de jogar o
cadáver ao mar, era a pior punição possível. Para os portugueses fazer isso era
o mais eficaz dos esforços de prevenir futuras rebeliões.
Testemunhas
da época, alvo de controvérsias, sustentam que os portugueses eram mais
eficientes no trato dos escravos que os concorrentes. Não porque eram
humanitários, mas porque desenvolveram técnicas de cuidado para reduzir a
mortandade, manter os cativos saudáveis, de modo a obterem melhores preços na
América.
Uma outra
parte muito importante foi a que é bem específica quanto à punição dada aos
cativos caso subvertessem a ordem dos portugueses. Segundo o jesuíta Jorge
Benci que viveu na Bahia, recomendava-se que as chibatadas não ultrapassassem
quarenta por dia. Mas, apesar das recomendações, referencias de viajantes e
cronistas relatam punições absurdas de duzentos a trezentos ou mais açoites.
Outra
expressão que tinha ouvido pela primeira vez em uma música da cantora Luedji
Luna e encontrei no livro é a de “malungo”. O livro conta que, vínculos se
formavam entre os povos africanos durante a travessia. Os sofrimentos
compartilhados forjavam amizades entre cativos de diferentes regiões,
diferentes etnias e linhagens, algumas das quais eram até rivais entre si na
África.
Esses novos companheiros de
travessia do oceano eram chamados no Brasil de malungos, palavra que vem do
idioma quimbundo de Angola e designa as correntes de ferro com que se prendiam
os cativos. No Brasil passou a ser sinônimo de pessoas que tinham viajado, em
geral acorrentadas, no mesmo navio negreiro. Eram, portanto, companheiros de
jornada e de infortúnio. (GOMES, 2019, p. 312)
E então o
livro vai discorrendo sobre as atividades econômicas em que os escravos
africanos foram o principal pilar de sustentação. Falar de açúcar é falar de
escravidão. E nessa parte, estudamos na escola que ocorreu em um dado período a
União Ibérica, mais precisamente entre 1580 até 1640. Nesse período os
holandeses para contrariar o rei Felipe que agora reinava sobre Espanha e
Portugal, invadiram o nordeste do Brasil e participaram ativamente do negócio
do açúcar. Nesse sentido o livro faz menção a esse processo de participação e o
de expulsão dos holandeses de Salvador. Depois menciona a invasão holandesa em
Pernambuco e o governo de Maurício de Nassau. E mais uma vez, o livro conta
muito mais que isso. Especificamente ao falar dos holandeses envolvidos com o
negócio do açúcar é citado a questão da escassez de mão-de-obra escrava e o
recrudescimento a captura de cativos indígenas e a crise do sistema colonial
português na América no século XVIII que levaria à busca por outros caminhos
como a descoberta de ouro e diamante em Minas Gerais.
O livro
encerra falando de Palmares e de Zumbi. Palmares recebeu esse nome por conta da
abundância de palmeiras na região. No século XVII Palmares já era uma
confederação de dezoito mocambos espalhados por uma vasta região que se
estendia do Cabo de Santo Agostinho ao sul do Recife, até o curso inferior do
rio São Francisco, atual divisa de Alagoas com a Bahia. Importante ressaltar
sobre a escassez de documentos a respeito de Palmares. Entre esses raros
documentos sobre Palmares, inclui diários de campanhas militares como a de um
capitão chamado João Blaer e tudo sobre o ponto de vista branco.
Entre
esses relatos é que se tem conhecimento de Ganga Zumba, líder supremo dos
mocambos confederados nas florestas de Alagoas. Era filho da princesa Aqualtune
e tio de Zumbi. Zumbi acompanhava as reuniões presididas pelo tio. Segundo o
governador Pedro de Almeida, Zumbi era “general das armas”, ou seja, o
principal comandante militar. O livro fala sobre o chamado “Acordo do Recife”
onde Ganga Zumba foi promovido ao posto de mestre de campo, uma espécie de
vassalo do rei de Portugal. Porém, Zumbi e outros mocambos não aceitaram tal
acordo, suspeitavam que estavam sendo vítimas de uma grande armadilha. Zumbi e
seus combatentes internaram-se nas matas e Ganga Zumba morreu envenenado,
supostamente a mando do sobrinho. Os seguidores de Ganga Zumba foram atacados
pelos portugueses, reescravizados e distribuídos para os fazendeiros das
imediações.
É nesse
contexto que entra em cena um dos bandeirantes mais importantes, o mameluco e
conhecido como um dos mais sanguinários da história, Domingos Jorge Velho. Aqui
o livro traz algumas definições para os bandeirantes como homens destemidos,
briguentos e insubmissos por natureza, usavam chapelões de abas largas, barba,
camisa e ceroulas, e caminhavam descalços ou, para atravessar os baixios e
alagados, usavam botas de cano algo. (GOMES, 416)
Caetano
de Melo e Castro que governou Pernambuco de 1693 até 1699 definia Domingo Jorge
Velho e seu bando como bárbaros, indômitos e que vivem do que roubam. No
entender desse pernambucano, paulistas era gente ruim, pior e mais indesejáveis
do que os próprios quilombolas.
Os
bandeirantes paulistas receberiam como doação da Coroa, parte das terras
conquistadas no quilombo, mais um quinto de todos os escravos capturados nos
combates. No ataque dos bandeirantes em 23 de janeiro de 1694 Zumbi sobreviveu
e ficou escondido numa grota da serra Dois Irmãos, hoje município alagoano de
Viçosa. No dia 20 de novembro de 1695 Zumbi foi finalmente capturado e morto
numa emboscada organizada pelo capitão paulista André Furtado de Mendonça. Zumbi
teve a cabeça decepada, salgada e exposta no alto de um poste erguido no Pátio
do Carmo em Recife, para servir de exemplo a outros escravos que porventura se
rebelassem.
No
penúltimo capítulo que trata sobre Zumbi é citado algumas obras fruto de uma
idealização romântica de uma história muito pouco documentada. E por fim,
algumas informações mais realistas como a de que Palmares nunca foi
abolicionista e que ao contrário, os chefes quilombolas, incluindo o mítico Zumbi,
tinha seus próprios escravos. Além disso, apresenta que, nessa construção
mitológica do herói Zumbi existem três versões: a dos colonos, a do Brasil
independente e a dos oprimidos.
Bem
resumidamente, a versão dos colonos é a imagem que Zumbi ganha durante a existência
do quilombo dos Palmares. O segundo Zumbi veio à tona no século XIX na
tentativa de construção de um Estado brasileiro e noção de identidade no
Primeiro e Segundo Reinado. Nessa versão, Palmares é apontado como núcleo da
barbárie africana. O terceiro Zumbi, a construção está em andamento, nasceu do
movimento abolicionista no século XIX que o resgatou como ícone da resistência
contra a escravidão.
Essa
terceira versão inspirou dois livros publicados na década de 1980 – Palmares,
a guerra dos escravos, de Décio Freitas e Zumbi, de Joel Rufino dos
Santos. Ambos apresentados como obra de não ficção, porém os autores abusam de
artifícios para preencher lacunas do conhecimento histórico. E embora desmentida
pela documentação histórica, essa biografia fictícia vai aos poucos se
consolidando como verdade e é o que mais aparece na internet hoje. Por isso a
importância do cuidado ao consultar informações e sítios na internet. A
importância do exercício da dúvida e de procurar evidências mais concretas a
respeito do tema.
Mas, por
fim o livro trouxe uma hipótese de um Zumbi gay, com base no ensaio do
antropólogo baiano Luiz Mott que entende que há detalhes a respeito da vida
sexual do herói dos Palmares que desafiam interpretações. Daí ele traz seis
pontos que indicam que Zumbi era homossexual, entre eles o fato de não haver
relatos ou evidências de que teria tido uma mulher e filhos. O segundo fator
seria o apelido de Zumbi, “Sueca”. O terceiro é que Zumbi descenderia
dos jagas de Angola, povo guerreiro, o qual a homossexualidade era aceita e
praticada com naturalidade. O quarto fator é que o líder possuía temperamento
suave e habilidades artísticas. O quinto, Zumbi teria sido criado até os quinze
anos pelo vigário de Porto Calvo, que Mott identifica também como provável
homossexual. E o sexto e último fator é o fato de Zumbi ter sido degolado e
castrado, tendo o pênis enfiado dentro da boca, uma forma simbólica e antiga de
humilhar os homossexuais, que “por não terem usado adequadamente seu falo,
tornaram-se merecedores de engoli-lo na hora da morte”, segundo a interpretação
de Mott. Porém, só Mott deu importância a essa hipótese, nem esquerda, nem
direita levou em conta essa possibilidade e isso é fácil de entender, tratando
o Brasil de um país machistas, homofóbico e patriarcal, onde a luta pela
aceitação da diversidade de gênero ainda é uma utopia distante, desnudar Zumbi
de sua virilidade seria o mesmo que aniquilar por completo um herói ainda em
gestação.
***
Finalizar
essa síntese com um ditado africano que o autor cita ainda na introdução que
diz assim “até o leão aprender a escrever, a história exaltará a versão do
caçador”. Muitas vezes o que lemos nos livros de história e até em sites da
internet, se não tivermos um cuidado e atenção, é uma versão contada do ponto
de vista do colonizador, do branco europeu. Crescemos lendo esses livros,
estudamos no ensino fundamental e médio uma história construída muito do ponto
de vista europeu. E mesmo na universidade nos deparamos com escritores brancos
e majoritariamente homens, o que poderíamos entrar numa outra discussão também,
mas não vem ao caso. São ingleses, franceses, alemães, etc.
Por isso
a importância “sempre” de um “olhar atento”. Ficar atenta ao ler, ao escutar o
que o outro diz, quem é esse outro que diz e de qual lugar ele fala. Sobre a
importância de um “olhar atento” como enfatiza Irene Vida Gala, africanista
brasileira que fala sobre os três olhares. Os olhares brancos que perpetuam os
registros de uma história repetida desde os tempos dos colonizadores. Os
olhares negros que reconhecem o papel do africano e de seus descendentes,
protagonistas de uma história tão antiga quanto o continente que são oriundos.
E a importância de um terceiro olhar, o olhar atento que é capaz de assimilar a
complexidade dessas duas histórias e de estabelecer uma compreensão mais ampla
ao mesmo tempo mais sutil e refinada das relações Brasil-África. Nesse olhar
atento é possível identifica e destacar novas narrativas, reinterpretar heróis,
acontecimentos e consequências. Eu convido a todas e todos a exercitarem esse
“olhar atento” nos estudos desse tema que é definidor de nossa história e
identidade.
REFERÊNCIA
GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

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