Escravidão Volume I

Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares




Uma vez um aluno me perguntou qual era o tema de história que mais gostava de ensinar. Como para mim, ensinar não está separado de aprender, hoje, sem sombra de dúvidas, o tema que mais gosto de aprender e consequentemente transmitir para as pessoas é sobre a escravidão. A escravidão é o assunto principal da história do Brasil e ponto. E, em um contexto que opinião parece ser mais importante do que fatos - "em minha opinião" a escravidão é o fato mais importante da história do Brasil. Vou buscar através desse texto demonstrar um pouco sobre a importância desse tema.

 

Esse texto será uma espécie de síntese, em forma de bate papo, do livro do Laurentino Gomes, Escravidão Volume I, que é parte de uma trilogia de livros sobre o tema. O primeiro volume lançado em 2019 fala sobre um período de 250 anos desde o primeiro leilão de cativos africanos registrado em Portugal em 8 de agosto de 1444 até o 20 de novembro de 1695, data da morte de Zumbi dos Palmares. O autor fez uma pesquisa ao longo de seis anos, incluindo viagens por doze países e três continentes em busca de relatos de viagens, crônicas, outros documentos e de trabalhos já realizados de importantes historiadores e especialistas sobre o tema.

 

Vamos lá...

 

Sabe-se que a escravidão é um fenômeno praticado há milênios por diferentes civilizações. Babilônios, romanos, chineses, egípcios, islâmicos, entre outros, escravizavam pessoas. E antes de falarmos sobre a prática da escravidão em si é sempre bom buscarmos saber a origem das palavras que usamos diariamente para chamar pessoas e fenômenos. O livro busca demonstrar que existem aspectos de natureza semântica relacionados ao tema escravidão. A palavra escravo, por exemplo, tem sua origem na língua portuguesa da palavra esclave que por sua vez deriva-se do latim slavus. Slavus ou eslavos. Eslavos é a designação de povos brancos de olhos azuis da região dos Bálcãs que eram grandes fornecedores de mão de obra cativa para o Oriente Médio e Mediterrâneo até o século XVIII. Escravo até aqui eram brancos loiros, de olhos azuis.

 

E, seria correto dizer que o povo africano foi durante mais de três séculos escravos do povo europeu? Escravo é um substantivo ou adjetivo de um humano cuja condição seria natural de cativo. O "politicamente correto" seria então o termo escravizado, pois, no particípio do verbo escravizar denotaria uma condição circunstancial - temporária. Um povo que foi temporariamente escravizado por outro povo e não "naturalmente" escravo. Essas sutilezas linguísticas são importantes e devem ser levadas em conta. Apesar que determinados vocábulos já se incorporaram aos usos e costumes da língua portuguesa e podem ser utilizados livremente por conta da compreensão dos leitores. Mas, eu prefiro exercitar o "olhar atento" para essas sutilezas linguísticas. 

 

Após o século XV e XVI com a ocupação europeia de novos continentes, novos ingredientes foram adicionados à escravização de pessoas. Segundo a pesquisa de Laurentino Gomes, entre esses ingredientes, está o regime de trabalho. Na América, a escravidão se tornou sinônimo de trabalho intensivo em grandes plantações de cana-de-açúcar, algodão, arroz, tabaco, café, mineração. Condição equivalente à das máquinas agrícolas industriais hoje. A segunda característica é o nascimento de uma ideologia racista que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo essa ideologia, o negro seria naturalmente bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, "só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão" segundo o historiador Alberto da Costa e Silva.

 

O livro apresenta o que seriam características de escravo. Escravo como propriedade e a origem da escravidão por inúmeros fatores, entre eles os cativos de guerra, os não pagadores de dívidas, escravidão hereditária. Escravo como sinônimo de estrangeiro ou de "o outro". Aquele que não pertence ao grupo social dominante. Segundo Paul F. Lovejoy a escravidão é uma maneira de negar ao forasteiro direitos, privilégios de uma sociedade. O próprio Platão defendia que as cidades gregas não deveriam possuir escravos de origem helênica.

 

***

 

As estatísticas demonstram que cerca de 12 milhões de africanos embarcaram para a Europa e para as Américas. Cerca de 1,8 milhões morreram na travessia. As expectativas de vida dos que sobreviviam à travessia eram baixíssimas. O tráfico sistemático de escravos para o Brasil começou por volta de 1560, embora se tenha notícia da chegada de cativos africanos em número pequeno por volta de 1538. O Brasil foi o país mais resistente e o último a abolir o cativeiro e também o maior território escravagista. Recebeu cerca de 5 milhões de africanos. Em termos de população negra ou parda, só ficamos atrás da Nigéria. Contamos com uma população afrodescendente de 115 milhões de pessoas. A Nigéria, país africano, tem cerca de 190 milhões. A Etiópia também na África tem cerca de 105 milhões de habitantes e é o terceiro país com maior população africana do mundo e segundo país africano com maior população negra. Ou seja, somos o segundo país com maior população afrodescendente.

Segundo consta exatamente no livro:

 

Hoje, sabe-se, com relativa precisão, que 12.521.337 de seres humanos embarcaram para a travessia do Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros, entre 1500 e 1867. Desses, 10.702.657 chegaram vivos à América. Os mortos seriam 1.818.680. [...] O Brasil, sozinho, recebeu 4,9 milhões de cativos, o equivalente a 47% do total desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850. (GOMES, 2019, p. 255)

 

Dos 12 milhões de negros transportados durante os três séculos cerca de 40% a 45% morriam na travessia. E os cadáveres eram jogados nas praias e rios. Depositados a céu aberto. 15% faleciam nos três primeiros anos. Triste! E nenhum livro conseguirá expressar as aflições dos cativos capturados. Essas informações só são possíveis a partir dos, ou, do chamado Livro dos Mortos que permite o cálculo assustador de 1,8 milhões de cativos mortos. Significa que durante 350 anos, 14 cadáveres eram atirados ao mar todos os dias.

Por isso, os navios que transportavam os africanos para a Europa e América são conhecidos como tumbeiros ou tumbas flutuantes. Porque negro era comida de tubarão. Os tubarões seguiam as rotas dos navios negreiros porque sabiam que corpos seriam lançados ao mar. Tanto que o Atlântico se tornou um cemitério de escravos. Morria-se de disenteria, varíola, febre amarela, de escorbuto, de suicídio e de banzo. Banzo era um surto de depressão, muito comum no povo preto, alguém que perdia o brilho no olhar, a vontade de comer e de viver.

 

Escravos que, em meio a surtos de depressão (o então famoso banzo), tentassem fazer greve de fome eram punidos com chicotadas e forçados a comer mediante o uso de um aparelho chamado speculum oris – um longo tubo flexível de metal que os marinheiros lhes enfiavam na garganta para que a comida descesse esôfago abaixo. (GOMES, 2019, p. 291)

 

Outro detalhe muito assustador é a respeito do espaço nos navios negreiros. Cada cativo tinha apenas dois metros quadrados, apenas o suficiente para esticar as pernas à noite. Na ausência de sanitários, as necessidades fisiológicas eram feitas dentro do próprio barracão que fedia a fezes e urina. Segundo relatos de médicos portugueses os escravos seminus dormiam no chão mesmo e eram tratados como gado.

 

Em 8 de agosto de 1444 ocorreu o primeiro leilão de escravos em Portugal, especificamente em Lagos, um vilarejo da região de Algarve. Foram vendidos 235 africanos, entre homens e mulheres. O registro desse primeiro leilão consta na crônica escrita pelo biógrafo de Dom Henrique, Gomes Eanes de Azurara. Foi ele que escreveu a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné.  O cativeiro aparece nesse momento como oportunidade de salvação das almas do povo preto, de retirá-los da barbárie e do paganismo segundo a visão do povo branco. Portugal entre 1450 e 1500 já é o principal país moderno a ter uma significativa população africana.

 

Você sabia que foi nesse contexto que surge o tal "mercado negro"? Pois, é. Mercado negro aqui são as feiras de compra e venda de escravos em Lisboa, Évora, Lagos e Porto. Só mendigos não tinham escravos em Portugal. Escravos eram vendidos em liquidação! Dados de presente, pedidos ao rei Afonso V para serem levados para outros lugares como Alemanha só para serem demonstrado como figuras exóticas e curiosas. Enfim, esse leilão de 1444 e o comércio de escravos ajudou a financiar as viagens marítimas de descobrimento.

 

Toda pessoa que passou pelo ensino médio já ouviu falar de Aristóteles, certo? Aquele filósofo grego que veio depois de Sócrates e Platão e que ensinava em Atenas, que foi professor de Alexandre, o Grande. Quem assistiu o filme "Alexandre" de 2004 talvez se lembre, caso não se lembre das aulas de filosofia ou história.  Para Aristóteles há pouca diferença entre os animais domésticos e a exploração do trabalho escravo, uma vez que "ambos emprestam seus esforços físicos para satisfazer às nossas necessidades" diria o filósofo.  Na Grécia havia cerca de 70 mil escravos dentre os 155 mil habitantes no auge da civilização grega.  Para Aristóteles a humanidade se dividia em duas, os senhores e os escravos. E isso explica muita coisa da trajetória da humanidade até aqui.

 

Mas, outros homens também afirmaram essa ideia em outros contextos. Entre esses homens estão Thomas Jefferson, aquele que redigiu a declaração de Independência dos EUA. Jhon Locke, importante humanista e figura central do movimento iluminista. Locke, inclusive, era acionista da Royal African Company que tinha o propósito principal de traficar escravos.  Escreveu: A necessidade de procurar a verdadeira felicidade é o fundamento da nossa liberdade. A verdadeira liberdade consiste em não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de um outro ser humano. Dentre outros filósofos iluministas como David Hume, Voltaire, Kant, Hegel que sustentam a ideia da superioridade do homem branco. 

 

Além de toda uma sustentação filosófica há também uma sustentação teológica para a escravidão de pessoas. A explicação teológica é a da Maldição de Cam. Em gênesis capítulo 9 ocorreu um episódio onde Noé é visto nu e embriagado pelo filho Cam ou Cão em algumas versões. Ao acordar da embriaguez, Noé amaldiçoa o filho dizendo: Maldito seja Canaã!  O livro "Economia Cristã dos Senhores no governo dos escravos" escrito pelo jesuíta Jorge Benci publicado em 1705 traz essa versão da escravidão como um dos efeitos do pecado original. Os escravos pretos seriam herdeiros da maldição de Cam e aprovando Deus essa maldição foi condenada à escravidão e cativeiro.

 

Mas, falando sobre os iluministas defenderem a liberdade e ao mesmo tempo terem ideias que justificaram a escravidão vamos trazer um conceito que os historiadores chamam de anacronismo. Anacronismo consiste num erro de cronologia ao atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos de outra conjuntura. Ou seja, não dá para chamar esses filósofos de racistas porque eram homens de seu tempo. Mas...

 

O livro enfatiza também a questão do domínio intercontinental do islamismo após a morte de Maomé no século VII e a escravidão como um dos pilares do Islã. Cerca de 12 milhões de negros teriam sido escravizados através do Saara. E dentro desse processo ocorre um tipo muito específico de cativeiro, a dos Eunucos, que representam uma forma extrema de escravidão. Os eunucos, também citados na bíblia, são homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos genitais ainda na adolescência. E devido à falta de apetite sexual eram designados a guarda dos haréns.  Eram também tesoureiros, ministros, conselheiros políticos e até comandantes militares. (GOMES, p.81)

O fato de não terem herdeiros que pudessem reivindicar patrimônio ou status, tornava esses homens uma forma mais conveniente de manter a ordem social. Segundo o livro no século X havia em torno de 11 mil eunucos sendo 7 mil negros.

 

***

Você sabia que muito antes do interesse pelas especiarias, a atividade econômica mais importante da expansão portuguesa no mundo foi o comércio de gente? Porque, muitas vezes, nas aulas de história sempre enfatizamos que um dos principais objetivos das viagens marítimas era a busca por especiarias e metais preciosos por conta da política mercantilista.

E uma das figuras mais controversas da história das navegações foi o infante “Dom Henrique, o Navegador”. Dom Henrique viveu entre 1394 até 1460 era tio de Afonso V rei de Portugal na época do primeiro leilão de cativos. Dom Henrique é conhecido como grande incentivador e mecenas das Grande Navegações, porém, segundo o livro, sua experiência marítima se resumia na verdade a curtas travessias no Mediterrâneo entre a costa portuguesa e o litoral da África. Diga-se de passagem, não era versado em geografia, nem em matemática e não tinha qualquer conhecimento em náutica. Na verdade, o mérito da expansão portuguesa deve-se a Pedro, irmão de Henrique. D. Henrique teve a “sorte” na verdade de ser um bom propagandista de si próprio como demonstra as Crônicas de Gomes Eanes de Azurara. Há mais evidências de que ele foi, na verdade, mais um grande traficante de escravos, o pioneiro e patrono do negócio de cativos africanos segundo o historiador Stephen Bown. Dom Henrique morrera falido e endividado, era um mau administrador dos seus próprios negócios.

É importante, no entanto, desconstruir toda uma visão romântica das Grandes Navegações e descobrimentos dos séculos XIV e XVI que teriam como motor o simples gosto pela aventura sob a liderança heroica de Dom Henrique. Além de toda uma ideia de combater os mouros e expandir a fé cristã na costa da África. Havia sim esse espírito de aventura e zelo missionário. Porém a principal motivação era a conquista de novos territórios, a espoliação pura e simples de seus recursos, incluindo a escravização de seus habitantes.

 Conta-se no livro que ao chegar em Calicute na Índia, Vasco da Gama foi recebido com desprezo e só quatro horas após o combinado pelo samorim, como é chamado o chefe local daquela região. O monarca indiano teria considerado desprezível os presentes trazidos pelo navegador. E um ato de truculência, por parte dos portugueses, teria ocorrido na viagem seguinte sob o comando de Pedro Álvares Cabral que havia acabado de passar pelo Brasil. Cabral levou balas de canhão como presente aos indianos e atacou Calicute de forma impiedosa. A cidade contava com cerca de 200 mil habitantes na época. Sob fogos dos navios de Cabral seria a primeira aglomeração urbana litorânea da história a ser bombardeada por canhões embarcados.

Outro fato citado no livro foi a relação dos cavaleiros templários com esse processo de expansão marítima e consequentemente escravização de pessoas. Nas cruzadas, os templários tinham como objetivo proteger a terra santa e lugares sagrados de Jerusalém e regiões vizinhas, além de dar segurança aos peregrinos. Para a ordem eram recrutados membros e monges guerreiros da nobreza europeia com um bom preparo militar. Os templários tinham conhecimento na área da astronomia, da cartografia e da matemática. Tal conhecimento teria sido assimilado com os árabes. Os templários também teria sido os primeiros banqueiros europeus da Alta Idade Média. Porém, a estrutura dos templários teria começado a ruir em 1244 após a expulsão dos cruzados da Terra Santa.

O rei Felipe, o Belo, da França mandou invadir sedes dos templários, confiscando todos os bens, porém o lendário tesouro jamais foi localizado. Rumores da época diziam que tal tesouro teria sido escondido em Portugal. Em 1317 o rei Dom Diniz de Portugal deu acolhida oficial aos templários perseguidos na Europa, alegava não terem cometido crime em território português. A versão aportuguesada dos templários recebeu o nome de Ordem de Cristo. Os templários portugueses, ou seja, a Ordem de Cristo estaria na vanguarda das Grandes Navegações. Dom Henrique, por sua vez, sagrou-se cavaleiro da Ordem na Batalha de Ceuta em 1415.  (GOMES, p. 95)

 

Nesse contato e conflito de culturas religiosas que vamos percebendo ao longo do livro e da história propriamente dita, partindo da mistura de cristianismo com islamismo, o livro traz outro acontecimento do século XV, mais precisamente em 1496 quando o rei Dom Manuel I manda expulsar judeus de todo reino português. Os judeus que ficaram foram obrigados a se converterem ao cristianismo e passaram a ser chamados de cristãos-novos. Esses homens tinha um nível maior de instrução e também tinham maior poder econômico. Fernando de Noronha, por exemplo, era um cristão-novo. Os cristãos-novos sempre foram um paradoxo na história portuguesa e brasileira. Eram muitas vezes perseguidos e outra vezes anistiados e recebiam determinados privilégios nos negócios.

 E sobre aquela que, do ponto de vista da história oficial é considerada a certidão de nascimento do Brasil, a carta escrita por Pero Vaz de Caminha e enviada ao rei Dom Manuel I em 1 de maio de 1500, comunicava a chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia. A população em geral só teve conhecimento da carta de Caminha em 1817 por conta da política sigilosa da Coroa portuguesa. Outra carta, escrita em 1501 por Matteo Cretico um espião em Lisboa teria informado sobre a “descoberta” do Brasil muito antes da carta de Caminha, chamando o Brasil de Terra dos Papagaios. Essa carta é considerada o primeiro documento oficial a respeito do descobrimento do Brasil a ter uma ampla divulgação na Europa. 

Sobre a população nativa brasileira, o livro discorre que ao chegarem na América, os europeus e os escravos africanos trouxeram com eles moléstias desconhecidas pelos indígenas como gripe, sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, lepra, sarna, febre amarela, e malária. A catástrofe foi tamanha que havia cerca 3 a 4 milhões de indígenas distribuídos em centenas de tribos que falavam mais de mil línguas e representavam uma das maiores diversidades culturais e linguísticas do mundo. Em 1808 ano da chegada da família real no Rio de Janeiro, a população brasileira era ainda de 3 milhões de habitantes. O que isso significa? Agora, três séculos depois da chegada de Cabral a população brasileira já havia se misturado drasticamente e era formada de brancos de ascendência europeia ou de africanos e seus descendentes. Havia cerca de 700 mil indígenas, 20 % do seu contingente original. Isso significa que, durante o período colonial, o Brasil exterminou 1 milhão de índios a cada cem anos. E mesmo com a intervenção dos jesuítas no processo de defesa da não escravização de indígenas é possível observar que índios foram escravizados até o século XVIII quando foram substituídos por negros africanos. (GOMES, 128)

Como não dá para falar de tudo que há em um livro de mais de quatrocentas páginas, é importante lembrar que estou fazendo apenas alguns recordes, destacando alguns capítulos e trechos que em minha leitura considerei significativos. Um deles, por exemplo, segundo relatos, em Luanda no ano de 1576, qualquer indivíduo, não importasse a cor da pele ou a habilidade, passava a ser considerado branco tão logo passasse a usar sapatos. O outro é que escravos transportavam europeus em redes pelas ruas e estradas, o que talvez já tenhamos visto em algum filme por aí. E também o significa de kilombo em Luanda. Que seria um campo militar ou local de iniciação de novos guerreiros que no Brasil tornara-se sinônimo de comunidade de escravos fugitivos – quilombos.  Nesses ritos de passagem, os prisioneiros mais aptos de suas guerras extrairiam dois dentes dianteiros da arcada superior, origem do substantivo “banguela”. O livro traz a diferença entre os negros ladinos e os boçais. Os ladinos como aqueles que sabiam a língua portuguesa, tinham sido batizados e já passado pelo cativeiro das ilhas atlânticas como São Tomé e Cabo Verde, locais considerados laboratório do tráfico. E os boçais seriam os africanos recém-chegados que nunca tinham tido qualquer contrato com a língua portuguesa.

Uma outra característica dos povos africanos é que eles acreditavam que o desmembramento do corpo impedia o espírito do morto de retornar à terra de seus ancestrais na África. Então, cortar a cabeça ou os membros de alguém, antes de jogar o cadáver ao mar, era a pior punição possível. Para os portugueses fazer isso era o mais eficaz dos esforços de prevenir futuras rebeliões.

Testemunhas da época, alvo de controvérsias, sustentam que os portugueses eram mais eficientes no trato dos escravos que os concorrentes. Não porque eram humanitários, mas porque desenvolveram técnicas de cuidado para reduzir a mortandade, manter os cativos saudáveis, de modo a obterem melhores preços na América.

Uma outra parte muito importante foi a que é bem específica quanto à punição dada aos cativos caso subvertessem a ordem dos portugueses. Segundo o jesuíta Jorge Benci que viveu na Bahia, recomendava-se que as chibatadas não ultrapassassem quarenta por dia. Mas, apesar das recomendações, referencias de viajantes e cronistas relatam punições absurdas de duzentos a trezentos ou mais açoites.

Outra expressão que tinha ouvido pela primeira vez em uma música da cantora Luedji Luna e encontrei no livro é a de “malungo”. O livro conta que, vínculos se formavam entre os povos africanos durante a travessia. Os sofrimentos compartilhados forjavam amizades entre cativos de diferentes regiões, diferentes etnias e linhagens, algumas das quais eram até rivais entre si na África.

 

Esses novos companheiros de travessia do oceano eram chamados no Brasil de malungos, palavra que vem do idioma quimbundo de Angola e designa as correntes de ferro com que se prendiam os cativos. No Brasil passou a ser sinônimo de pessoas que tinham viajado, em geral acorrentadas, no mesmo navio negreiro. Eram, portanto, companheiros de jornada e de infortúnio. (GOMES, 2019, p. 312)

 

E então o livro vai discorrendo sobre as atividades econômicas em que os escravos africanos foram o principal pilar de sustentação. Falar de açúcar é falar de escravidão. E nessa parte, estudamos na escola que ocorreu em um dado período a União Ibérica, mais precisamente entre 1580 até 1640. Nesse período os holandeses para contrariar o rei Felipe que agora reinava sobre Espanha e Portugal, invadiram o nordeste do Brasil e participaram ativamente do negócio do açúcar. Nesse sentido o livro faz menção a esse processo de participação e o de expulsão dos holandeses de Salvador. Depois menciona a invasão holandesa em Pernambuco e o governo de Maurício de Nassau. E mais uma vez, o livro conta muito mais que isso. Especificamente ao falar dos holandeses envolvidos com o negócio do açúcar é citado a questão da escassez de mão-de-obra escrava e o recrudescimento a captura de cativos indígenas e a crise do sistema colonial português na América no século XVIII que levaria à busca por outros caminhos como a descoberta de ouro e diamante em Minas Gerais.

O livro encerra falando de Palmares e de Zumbi. Palmares recebeu esse nome por conta da abundância de palmeiras na região. No século XVII Palmares já era uma confederação de dezoito mocambos espalhados por uma vasta região que se estendia do Cabo de Santo Agostinho ao sul do Recife, até o curso inferior do rio São Francisco, atual divisa de Alagoas com a Bahia. Importante ressaltar sobre a escassez de documentos a respeito de Palmares. Entre esses raros documentos sobre Palmares, inclui diários de campanhas militares como a de um capitão chamado João Blaer e tudo sobre o ponto de vista branco.

Entre esses relatos é que se tem conhecimento de Ganga Zumba, líder supremo dos mocambos confederados nas florestas de Alagoas. Era filho da princesa Aqualtune e tio de Zumbi. Zumbi acompanhava as reuniões presididas pelo tio. Segundo o governador Pedro de Almeida, Zumbi era “general das armas”, ou seja, o principal comandante militar. O livro fala sobre o chamado “Acordo do Recife” onde Ganga Zumba foi promovido ao posto de mestre de campo, uma espécie de vassalo do rei de Portugal. Porém, Zumbi e outros mocambos não aceitaram tal acordo, suspeitavam que estavam sendo vítimas de uma grande armadilha. Zumbi e seus combatentes internaram-se nas matas e Ganga Zumba morreu envenenado, supostamente a mando do sobrinho. Os seguidores de Ganga Zumba foram atacados pelos portugueses, reescravizados e distribuídos para os fazendeiros das imediações.

É nesse contexto que entra em cena um dos bandeirantes mais importantes, o mameluco e conhecido como um dos mais sanguinários da história, Domingos Jorge Velho. Aqui o livro traz algumas definições para os bandeirantes como homens destemidos, briguentos e insubmissos por natureza, usavam chapelões de abas largas, barba, camisa e ceroulas, e caminhavam descalços ou, para atravessar os baixios e alagados, usavam botas de cano algo. (GOMES, 416)

Caetano de Melo e Castro que governou Pernambuco de 1693 até 1699 definia Domingo Jorge Velho e seu bando como bárbaros, indômitos e que vivem do que roubam. No entender desse pernambucano, paulistas era gente ruim, pior e mais indesejáveis do que os próprios quilombolas.

Os bandeirantes paulistas receberiam como doação da Coroa, parte das terras conquistadas no quilombo, mais um quinto de todos os escravos capturados nos combates. No ataque dos bandeirantes em 23 de janeiro de 1694 Zumbi sobreviveu e ficou escondido numa grota da serra Dois Irmãos, hoje município alagoano de Viçosa. No dia 20 de novembro de 1695 Zumbi foi finalmente capturado e morto numa emboscada organizada pelo capitão paulista André Furtado de Mendonça. Zumbi teve a cabeça decepada, salgada e exposta no alto de um poste erguido no Pátio do Carmo em Recife, para servir de exemplo a outros escravos que porventura se rebelassem.

No penúltimo capítulo que trata sobre Zumbi é citado algumas obras fruto de uma idealização romântica de uma história muito pouco documentada. E por fim, algumas informações mais realistas como a de que Palmares nunca foi abolicionista e que ao contrário, os chefes quilombolas, incluindo o mítico Zumbi, tinha seus próprios escravos. Além disso, apresenta que, nessa construção mitológica do herói Zumbi existem três versões: a dos colonos, a do Brasil independente e a dos oprimidos.

Bem resumidamente, a versão dos colonos é a imagem que Zumbi ganha durante a existência do quilombo dos Palmares. O segundo Zumbi veio à tona no século XIX na tentativa de construção de um Estado brasileiro e noção de identidade no Primeiro e Segundo Reinado. Nessa versão, Palmares é apontado como núcleo da barbárie africana. O terceiro Zumbi, a construção está em andamento, nasceu do movimento abolicionista no século XIX que o resgatou como ícone da resistência contra a escravidão.

Essa terceira versão inspirou dois livros publicados na década de 1980 – Palmares, a guerra dos escravos, de Décio Freitas e Zumbi, de Joel Rufino dos Santos. Ambos apresentados como obra de não ficção, porém os autores abusam de artifícios para preencher lacunas do conhecimento histórico. E embora desmentida pela documentação histórica, essa biografia fictícia vai aos poucos se consolidando como verdade e é o que mais aparece na internet hoje. Por isso a importância do cuidado ao consultar informações e sítios na internet. A importância do exercício da dúvida e de procurar evidências mais concretas a respeito do tema.

Mas, por fim o livro trouxe uma hipótese de um Zumbi gay, com base no ensaio do antropólogo baiano Luiz Mott que entende que há detalhes a respeito da vida sexual do herói dos Palmares que desafiam interpretações. Daí ele traz seis pontos que indicam que Zumbi era homossexual, entre eles o fato de não haver relatos ou evidências de que teria tido uma mulher e filhos. O segundo fator seria o apelido de Zumbi, “Sueca”. O terceiro é que Zumbi descenderia dos jagas de Angola, povo guerreiro, o qual a homossexualidade era aceita e praticada com naturalidade. O quarto fator é que o líder possuía temperamento suave e habilidades artísticas. O quinto, Zumbi teria sido criado até os quinze anos pelo vigário de Porto Calvo, que Mott identifica também como provável homossexual. E o sexto e último fator é o fato de Zumbi ter sido degolado e castrado, tendo o pênis enfiado dentro da boca, uma forma simbólica e antiga de humilhar os homossexuais, que “por não terem usado adequadamente seu falo, tornaram-se merecedores de engoli-lo na hora da morte”, segundo a interpretação de Mott. Porém, só Mott deu importância a essa hipótese, nem esquerda, nem direita levou em conta essa possibilidade e isso é fácil de entender, tratando o Brasil de um país machistas, homofóbico e patriarcal, onde a luta pela aceitação da diversidade de gênero ainda é uma utopia distante, desnudar Zumbi de sua virilidade seria o mesmo que aniquilar por completo um herói ainda em gestação.

 

***

Finalizar essa síntese com um ditado africano que o autor cita ainda na introdução que diz assim “até o leão aprender a escrever, a história exaltará a versão do caçador”. Muitas vezes o que lemos nos livros de história e até em sites da internet, se não tivermos um cuidado e atenção, é uma versão contada do ponto de vista do colonizador, do branco europeu. Crescemos lendo esses livros, estudamos no ensino fundamental e médio uma história construída muito do ponto de vista europeu. E mesmo na universidade nos deparamos com escritores brancos e majoritariamente homens, o que poderíamos entrar numa outra discussão também, mas não vem ao caso. São ingleses, franceses, alemães, etc.

Por isso a importância “sempre” de um “olhar atento”. Ficar atenta ao ler, ao escutar o que o outro diz, quem é esse outro que diz e de qual lugar ele fala. Sobre a importância de um “olhar atento” como enfatiza Irene Vida Gala, africanista brasileira que fala sobre os três olhares. Os olhares brancos que perpetuam os registros de uma história repetida desde os tempos dos colonizadores. Os olhares negros que reconhecem o papel do africano e de seus descendentes, protagonistas de uma história tão antiga quanto o continente que são oriundos. E a importância de um terceiro olhar, o olhar atento que é capaz de assimilar a complexidade dessas duas histórias e de estabelecer uma compreensão mais ampla ao mesmo tempo mais sutil e refinada das relações Brasil-África. Nesse olhar atento é possível identifica e destacar novas narrativas, reinterpretar heróis, acontecimentos e consequências. Eu convido a todas e todos a exercitarem esse “olhar atento” nos estudos desse tema que é definidor de nossa história e identidade.

 

 

REFERÊNCIA

GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

 

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