Fichamento do livro Teogonia: a origem dos deuses de Hesíodo
Fichamento
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Livro:
Teogonia: A origem dos deuses |
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Referência: Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1981. |
Teogonia:
a origem dos deuses
Capítulo I
Discurso
sobre uma canção numinosa
O objetivo a que se programa este trabalho é descrever como foi vivida e apresentada na Teogonia hesiódica a complexão das concepções arcaicas de linguagem, de tempo, de Ser e de Verdade.
A linguagem é, neste caso, a linguagem do aedo, a canção, - uma canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma experiência numinosa. (p. 12)
Capítulo
II
Ouvir
e viver a canção
Os estudiosos designaram Arcaica a Época em cujos umbrais Hesíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia os séculos VIII-VII a.C. testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais e culturais cujo florescimento ulterior transmutaria revolucionariamente as condições, fundamentos e pontos de referência da existência humana: a pólis, o alfabeto e a moeda. No entanto, a poesia de Hesíodo é anterior ao florescimento dessas três invenções catastróficas e, ainda que já tenha sido escrita ao ser composta, toda ela se orienta e vigora dentro das dimensões anteriores às condições paulatinamente trazidas por essas três.
Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da pólis e à adoção do alfabeto, o aedo (poeta cantor) representa o máximo poder da tecnologia de comunicação. Toda visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e
presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas)." (p. 15)
Em Hesíodo as palavras são forças divinas, deusas nascidas de Zeus e Memória (As Musas), mas Hesíodo já ouve o apelo do Todo-Uno e é claramente perceptível na Teogonia a tendência de toda a polimorfa realidade e os múltiplos âmbitos do Divino convergirem subordinados à realeza de Zeus Pai dos homens e dos deuses. A luta de Zeus pelo poder e a manutenção do poder por Zeus é à uma o ápice e o centro da visão do mundo apresentada na Teogonia; - isso e ainda ser a Teogonia uma sinopse não só de mitos de diversas procedências mas uma sinopse do próprio processo cosmogônico e mundificante mostram que neste canto arcaico pulsa já o primeiro impulso do pensamento racional. (p.17, 18)
Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia oral foi o centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da gente que, - reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa, festiva e mágica, - o ouviam. Então, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros, de restaurar e renovar a vida. (p. 19)
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de cantos cosmogônicos tinha o poder de por os doentes que os ouvissem em contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o poder e impacto que a força da palavra tinha sobre os ouvintes. – (p. 19)
Este poder ontopoético que a palavra teve multimilenarmente nas culturas orais se faz presente na poesia de Hesíodo como um poder ontofânico. (p.19)
Capítulo III
Musas e Ser
O que se passa despercebido, o que está oculto, o não presente, é o que resvalou já no reino do Esquecimento e do Não-Ser. O que se mostra à luz, o que brilha ao ser nomeado, o não ausente, é o que Memória recolhe na força da belíssima voz que são as Musas. No entanto, Memória gerou as Musas também como esquecimento (“para oblívio de males e pausa de aflições”, v. 55) e, força numinosa que são, as Musas tornam o ser-nome presente ou impõe-lhe a ausência, manifestam o ser-mesmo como lúcida presença ou o encobrem com o véu da similitude, presentificam os deuses configuradores da Vida e nomeiam a noite negra. (p. 27 e 28)
O poeta, portanto, pelo mesmo dom das Musas, é o profeta dos fatos passados e de fatos futuros. Só a força nomeadora e ontofânica da foz (das Musas) pode redimi-los, aos fatos passados e futuros. (p. 29)
Capítulo IV
Musas e o Poder
A linguagem, - que é concebida e experimentada por Hesíodo como uma força múltipla e numinosa que ele nomeia com o nome de Musas, - é filha da Memória, ou seja: deste divido Poder de trazer à presença o não-presente, coisas passadas e futuras. Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória. O ser-aparição, portanto, dá-se através da linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. (p. 32)
O ser-aparição é o desempenho (= a função) da Musas. E o desempenho das Musas é ser-aparição. – É na linguagem que se dá o ser-aparição – e também o simulacro, as mentiras. É na linguagem que impera a aparição (alethéa) – e também o esquecimento (lesmosyne). O ser se dá na linguagem porque a linguagem é numinosamente a força-de-nomear. (p. 32)
As Palavras falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as Palavras por excelência o mais real e consistindo o poder delas especificamente num poder de presentificação, nas Palavras reside o ser. (p. 33)
Da mãe se diz medéusa e do pai metíeta. Medéusa indica sobreturo a atividade de cuidar, tomar conta de, donde a acepção de reinar, dominar: “rainha das colinas de Eleutera”. Metíeta, de mêtis (= manha, sabedoria prática), envolve a ideia de habilidade em encontrar expedientes e saídas, traduzi-os – preservando a dignidade em que os gregos arcaicos tinham a mêtis – por “sábio”. [...] (p. 34 e 35)
Se as Musas já vêm à luz na plenitude de seu ser e no desempenho de suas funções, entre este momento e as uniões de Zeus e Memória há um tempo de gestação marcado pela circularidade: “quando girou o ano e retornaram as estações/ com as mínguas das luas e muitos dias completaram-se”. (p. 35)
“os gregos conheciam três maneiras de se impor: pela violência (bia), pela persuasão (peithó), e pela sedução”. Esta última é função das Khárites, Graças, sequazes-irmãs das Musas, e a estreita conexão entre ambos os grupos se revela também na homonímia (Thalía-Thalía) e proximidade onomástica (Eutérpe-Euphrosyne) entre indivíduos de um e outro grupo. (p. 37, 38)
Sobre o poder da Palavra
Na administração da justiça, baseada no uso correto e eficaz da Palavra, os reis colaboram com a manutenção desta ordem cósmica, com o que asseguram à sua comunidade o equilíbrio, a opulência e o futuro próspero. Os reis são operadores e colaboradores dos acontecimentos que se dão no cosmos, porque são Senhores da Palavra. O poder que têm da Palavra lhes dá o poder sobre acontecimentos sociais e cósmicos. (p. 41 e 42)
Belavoz é a mais importante das Musas, porque ela é que acompanha os reis venerados. A voz é bela não porque seja agradável e requintada, não é bela por características que consideramos formais, - mas por este poder, compartilhado por reis e poetas, de configurar e assegurar a Ordem, por este poder de manutenção da Vida e de custódia do Ser. O cantor servo das Musas é o guardião do Ser, os reis alunos de Zeus são os mantenedores da Ordem (do Cosmos), a ambos por igual patrocina e sustenta Belavoz. – Bela, pelo seu poder influir decisivamente nas fontes do Ser e da vida, pela sua pertinência às dimensões do mundo e ao sentido e totalidade da Vida. (p. 42)
Capítulo V
A Quádrupla origem da Totalidade
Se acolhermos a proposta de West, que me parece mais bem fundada na tradição e autoridade dos Antigos (e mais bem encaixada no sentido do contexto), as potestades que estão das Origens são em Hesíodo: Kháos, Terra, Tártaro e Eros. (p. 45)
Terra, além da clareza do nome, tem um epíteto que lhe define o ser: “de todos sede irresvalável sempre”. É a segurança e firmeza inabaláveis, o fundamento inconcusso de tudo, nela e por ela têm a sua sede os deuses olimpos. (p. 46)
O Tártaro é nevoento (invisível) e fica no fundo da Terra de largos caminhos. [...] o Tártaro “no fundo da Terra” é uma espécie de duplo especular e negativo da Terra e do Céu (que são ambos “sede irresvalável para sempre”). (P. 46 e 47)
A localização do Tártaro (“no fundo da Terra”) e sua natureza simétrica e negativa quanto à da Terra (lugar da queda sem fim nem rumo e do império da Noite) ao mesmo tempo que o ligam intima e essencialmente à Terra (de que ele é o contraponto) aproximando-o e aparentando-o a Kháos em cuja descendência se incluem Érebos (região infernal) e Noite. (p. 47)
Eros é a Potestade que preside à união amorosa, o seu domínio estende-se irresistível sobre deuses e sobre homens (“ de todos os deuses e de todos os homens doma no perito o espírito e a prudente vontade”). Ele é um desejo de acasalamento que avassala todos os seres sem que se possa opor-lhe resistência: ele é solta-membros. O melhor comentário que conheço a este epíteto de Eros é uma ode de Safo em que ela descreve seu estado de paixão amorosa que, num crescente, beira a lassidão, abandono e palidez da morte, enquanto sua bem-amada entretém-se com um homem. (p. 47)
Definição de Caos e Eros
O nome Kháos está para o verbo khaíno ou sua variante khásko (=”abrir-se, entreabrir-se” e ainda: “abrir a boca, as fauces ou o bico”) assim como Éros está para o verbo erão ou sua variante éramai (= “amar, desejar apaixonadamente”). Tal como Éros é a força que preside à união amorosa, Kháos é a força que preside a separação, ao fender-se dividindo-se em dois. A imagem evocada pelo nome Éros é a da união do par de elementos masculino e feminino e a resultante procriação da descendência deste par. A imagem evocada pelo nome Kháos é a dde um bico (de ave) que se abre, fendendo-se em dois o que era um só – Éros é a potência que preside à procriação por união amorosa, Kháos é a potência que preside à procriação por cissiparidade. Se a palavra Amor é uma boa tradução possível para o nome Éros, para o nome Kháos uma boa tradução possível é a palavra Cissura – ou (e seria mais adequado, se não fosse pedante): Cissor. (P. 49)
Há na Teogonia duas formas de procriação: por união amorosa e por cissiparidade. Os primeiros seres nascem por cissiparidade: - uma divindade originária biparte-se, permanecendo ela própria ao mesmo tempo que dela surge por esquizogênese uma outra divindade. Assim Érebo e Noite nasceram do Kháos. Assim Terra primeiro pariu igual a si mesma o Céu constelado, pariu as altas Montanhas e depois o Mar infértil. (p. 50)
Érebo, as trevas infernais, tem só que invertidas a mesma posição e natureza que Éter, a luminosidade celeste, - e mais: o masculino Éter e seu par o Dia ( que é feminino em Grego: Hemére) nascem do par acasalado Érebo e Noite. (p.51)
Kháos é a potência que instaura a procriação por cissiparidade, é um princípio de cissura e de separação, e como tal opõe-se e Éros que, como princípio cosmogônico, instaura a procriação por união de dois elementos diversos e separados, masculino e feminino. Ambos, Kháos e Éros, estão lado a lado de Terra de amplo seio, de todos sede inabalável sempre. A rigor, Kháos e Éros, enquanto potências cosmogônicas, são paredros de Terra que sim é o assento sempre firme, - o Fundamento Originário. (p. 52)
Kháos e Éros, nesta leitura que estou propondo, prefiguram na Teogonia hesiódica as duas forças motrizes que em Empédocles encadeiam e desencadeiam o ciclo do processo cósmico: Neikos e Afrodite, Ódio e Amor. (p. 53)
Sobre identidade e alteridade
Entendendo-se Kháos-Tártaro como um princípio ontogenético, estas passagens citadas significam que cada ente se determina não tanto pelo que ele é, mas pelo que ele não é e pelo contraste (contiguidade) do que ele é com o que ele não é: tal como uma silhueta, cada ente ou cada coisa se determina e se define contra o pano de fundo (e de dentro e de frente e de fora, - múltiplo fundo) do que ele ou ela não é. (p. 54)
Capítulo VI
Três fases e três linhagens
A este confronto, descreve-o a sabedoria de Heráclito: “a oposição é reunidora, e das desuniões surge a mais forte harmonia: através do conflito é que tudo vem a ser”. Neste contexto, não é difícil entendermos como Heráclito tenha encontrado no Combate e na diferença a causa e o fundamento de todos os seres, e que tenha sentido como uma instância deontológica o “saber que o Combate é comum, a justiça é o Conflito e todos os seres surgem através do Conflito e da Necessidade. (p.61)
A primeira fase está nas proximidades das Origens. Num universo ainda uniforme, prevalece a força fecundante do Céu que, ávido de amor e com inesgotável desejo de cópula, frequenta como macho a Terra de amplo seio. [...] Cobrir toda a Terra ao redor, e ser para os deuses venturosos assento sempre seguro. Cobrir a Terra é fecunda-la hierogamicamente através chuva-sêmen; ser o assento dos deuses é dar-lhes origem e fundamento, fundar-lhes a existência. (p. 63)
A Terra está constantemente prenhe, o Céu está em constante desempenho de ambas as suas funções que, pela extrema vizinhança das Origens, se cumprem numa só ação extremamente cheia de potência vital. (p. 63)
A segunda fase cósmica é o reinado de Cronos cujo poder é o exercido de seu curvo pensamento, sempre de atalaia e sempre se disfarçando. Cronos sabia, pela Terra e o Céu constelado, que, apesar de toda a sua força, era seus destino por desígnios do grande Zeus ser dominado por um filho. (p. 65)
O segundo momento da partilha das honras é o da dominação de Cronos por Zeus e o catastrófico movimento que constitui a titanomaquia. (p. 66)
O terceiro momento da partilha coincide portanto com a estruturação e constituição do reinado de Zeus. [...]
Zeus casa-se com Métis, a oceanina; com Têmis, a uranida; com Eurínome, a oceanina; com Deméter, a cronida sua irmã; com Memória, a uranida; com Leto, neta de Céu e Terra; e com outra irmão sua, Hera; - e assim constitui o seu reino. (p. 71) ...
o Mar representa também um tipo de sabedoria de inesgotáveis recursos, que prevê o imprevisível, que enxerga o recôndito e o inescrutável, - em suam: uma consciência que, como o Mar, domina, em todas as suas dimensões a amplidão temporal e espacial. Um saber oracular e prático que Nereu – o mais velho filho do Mar detém, e cujos diversos aspectos alguns nomes de suas filhas nomeiam. (p.72)
Dos médea arrancados ao Céu surgem, de uma parte, dos salpicos sangrentos caídos sobre a Terra, as Erínias, e, de outra parte da espuma-esperma (aphrós) ejaculada e caída no Mar, Afrodite. As Erínias vêm do sangue que se derruba no chão como Afrodite vem do esperma que docemente bóia no Mar. (p. 74)
As erínias (em grego: Ἐρινύες), na mitologia grega, eram personificações da vingança. Enquanto Nêmesis (deusa da vingança) punia os deuses, as erínias puniam os mortais. Na mitologia romana, eram chamadas fúrias – Furiæ ou Diræ.
Zeus ao iniciar seu reinado desposa uma divindade de natureza aquática, Métis, e uma de natureza terrestre, Thémis. (p. 74)
[...]
Tendo-se tornado Metíeta e tendo com isso posto seu reinado definitivamente ao abrigo das sublevações, Zeus gera Palas Atena, que é ela própria a Sapiência guerreira. Unindo-se à Lei Ancestral Thémis, Zeus estabelece ordem, ritmo e melodia no seu reinado: gera as Hôrai e as Moirai. (p. 76)
As Hôrai, portanto, nascidas de Zeus e Thémis, têm por função instaurar a boa distribuição dos bens sociais, as boas relações entre homens e a ordem que ritma as forças produtivas da Natureza. – As Moirai (na tradução latina, as Parcas), “a quem mais deu honra o sábio Zeus”, fixam aos homens morais os seus lotes de bem e mal. Enquanto filhas de Zeus e Thémis, as Moirai representam a Fatalidade sob o aspecto positivo de configuração e ordenação dos destinos humanos segundo um peso e medida divinos; sob o aspecto negativo, essas Moirai são filhas da Noite e representam a sofrida experiência do restrito e inexorável lote de bem e de mal a que cada homem tem que se submeter como seu único destino. (p. 77)
No seu quarto casamento, Zeus desposa, como no segundo, uma deusa de natureza terrestre: a multinutriz Deméter, sua própria irmã. Se Thémis explicita a Terra sob o aspecto do inabalável e da firmeza incontestável, Deméter a explicita enquanto forças ctônicas fecundas e produtoras de alimento. Assim, a filha de Deméter, Perséfone, se associa a Hades, já que os mortos e a fecundidade subsolar pertencem ao mesmo reino. (p. 78)
Com Mnemosyne (Memória) a lucidez e a sobranceria do Céu transparecem na natureza das nove filhas, as Musas elas-mesma. (p. 78)
Completando a constituição do seu reino, por último Zeus desposa Hera, outra irmã sua de quem nascem Juventude (Hébe), Ares e Ilítia. (p. 79)
[...]
Capítulo VII
Memória e Moira
Memória é uma potência cósmica, que nasce da cópula do Céu e da Terra, esses fundamentos inabaláveis dos Deuses e de Tudo, assim como deles é que nascem a Visão (Théia), a Fluência (Rhéia), a Luminosidade (Proíbe) e a Instauradora-Nutriz (Téthys)
Memória, que mantém as ações e os seres na luz da Presença enquanto eles se dão como não-esquecimento (a-létheia), gera de Zeus Pai as Forças do Canto cuja função é nomear-presentificar-gloriar tanto quanto a de deixar cair no Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno Não-Ser tudo o que não reclama a luz da Presença. (p.85)
[...]
...é o fato de a Alteridade e a Ipseidade darem-se tanto como coincidência quanto como diferença que se torna possível a relação de concomitância entre os entes e eventos excluir e substituir a relação de causa e efeito.
A alteridade coincide com a Ipseidade tanto quanto dela difere: o Outro é o Mesmo (coincide com o Mesmo) tanto quanto é – na referência ao Mesmo – o Outro difere de si Mesmo). Zeus é os ciclopes e os ciclopes são atributos da essência de Zeus tanto quanto os ciclopes são os ciclopes (e não Zeus) e Zeus é Zeus (e não os ciclopes). Igualmente, Métis é uma faculdade do espírito de Zeus e Zeus tem incorporada a seu espírito essa faculdade nomeada Métis tanto quanto Métis é Métis com uma existência e uma história outras que não são nem a existência nem a história de Zeus. (p. 94)
Definição de Génos
Que significa génos? – Essa palavra é frequentemente traduzida por “raça”, ou por “estirpe” ou por “família”, mas nenhuma dessas traduções, embora estritamente corretas, da conta de todo o significado de génos, - justamente por serem restritas, pois é isso e muito mais além disso. A palavra génos se liga etimológica e semanticamente ao verbo gígnomai que quer dizer “nascer” e também tornar-se ou “devir”, portanto em génos designa um grupo de indivíduos ligados entre si por laços de nascimento e pela comunhão de uma natureza dada por nascimento, natureza essa que os constitui mais decisivamente que qualquer outro fator. Do ponto de vista do génos, o indivíduo se define e vale sobretudo pelo seu nascimento, que lhe constitui a natureza e esse indivíduo não é senão uma expressão momentânea dessa natureza: todas as ações, decisões, falhas e êxitos do indivíduo têm fonte não na individualidade dele mas nessa natureza supra-individual que caracteriza o génos. (p. 95)
Capítulo VIII
A temporalidade da Presença Absoluta
E assim é, na Teogonia hesiódica, para cada deus e cada evento numinoso; e, verdadeiramente, - segundo a cosmovisão que nessa obra se documenta, - tudo é numinoso, o Universo são múltiplas e inumeráveis manifestações do Divino. Pouco mais de um século depois de Hesíodo, Tales de Mileto, segundo informação que nos transmite Aécio, afirmava: “tudo é animado e plenamente numinoso”. (p. 104)
Isto demonstra que não é possível pensarmos a Teogonia segundo a representação de uma temporalidade sucessiva, organizada pelas relações de anterioridade e posteoridade, seja ela do tipo linear escoativo-irreversível (como no Cristianismo, por exemplo) ou do tipo circular repetitivo-reversível (como na Escola Pitagórica ou em Empédocles, por exemplo). Pensar a Teogonia segundo essas representações do tempo estranhas a ela é reduzi-la ao absurdo, e, efetivamente, modernos intérpretes e editores de Hesíodo se fatigam no afã de discutir a “autenticidade” hesiódica de certos versos pelo único motivo que esses versos lhes parecem contraditórios”. (p.109)
Não há um tempo único e uniforme duração homogênea e infinita, comum a todos os Deuses e preexistente a eles; há tempos múltiplos e qualificados diversamente segundo o nascimento-natureza do Deus que o instaura. (p. 109)
Cada Deus, como Presença absoluta que é, instaura sua própria ordem temporal. (p. 110)
Pelo fato de o tempo se múltiplo e não único, adjetivo e não substantivo, a inter-relação dos Deuses não é de ordem cronológica, mas crato-onto-lógica: os Deuses se conexionam, se organizam e se hierarquizam segundo a força do ser.
(p. 110)
O fato de Kháos ter nascido primeiríssimo e a Terra ter vindo depois indica tão somente que têm um valor diferente e uma diferente função no constituir-se de cada ser, e que o valor e a função de Kháos aí prepondera. Esas expressões temporais prótista e épeita têm um sentido ontológico, e não cronológico: indicam a prioridade de Kháos sobre Terra e Eros. (p.110)
Capítulo IX
A presença do Nume-nome
As deusas Musas cantam no Olimpo para deleite de Zeus o mesmo Canto que o aedo
servo das Musas, pela outorga que estas lhe fizeram, canta – não só para o deleite dos ouvintes mortais – mas também para a manutenção da Vida, para a vivificante comunhão com o Divino, para a transmissão do Saber e para que se possa ter visão da Totalidade do Ser. (p. 116)
As Musas têm nos Encantos de seus Cantos o poder de presentificar o Mundo e as dimensões, entes e eventos intra e extra-mundanos. (p.119)
O Mundo é um conjunto inesgotável de Numes circunscritos por uma ordem que lhes
atribui seus departamentos. (p. 124)
Glossário
1.
Numinoso = influenciado, inspirado pelas qualidades
transcendentais da divindade.
2.
Símil = que se semelha; semelhante, similar.
3.
Ontofânico: onto = ser + fânico = revelação, + ser =
revelação do ser
4.
Teogonia expressão grega theosgonia, que significa o nascimento dos
deuses.
5.
Especular: studar com atenção, detalhadamente; pesquisar,
investigar.
6.
Tétrico: que causa horror; horrível, medonho.
7.
Subsumida: colocado, integrado, considerado, concebido,
admitido.
8.
Gemeralidade: situação em que se verifica a gestação de
mais do que um feto no útero
9.
Ipseidade: o atributo próprio, característico e único de um
ser, que o difere dos demais.
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