Tornar-se Negra e professora decolonial:
A importância da palavra e do coletivo na constituição de identidades
Grace Kelly Ferreira
RESUMO
O colonialismo dos séculos XVI ao XIX, responsável pelo domínio de terras nas Américas, Ásia e África, também colonizou subjetividades. Territórios e populações dominadas por europeus sofreram processos de episteminicídios. As escolas e universidades ainda apresentam um saber eurocentrado que produz apagamentos. O artigo pretende demonstrar que é por meio da palavra e dos movimentos coletivos que o negro e outros povos subalternizados (re)constroem suas identidades, não na alteridade e supremacia branca. É por meio da construção do próprio discurso, contando sua própria história, exercendo autonomia que ocorre o processo de decolonização de subjetividades. Para isso o artigo parte de uma questão pessoal/profissional e de uma discussão bibliográfica dos trabalhos de Neusa Santos Souza e Frantz Fanon e outros teóricos da decolonialidade, fundamentais para repensarmos a produção do saber a partir dos povos subalternizados historicamente.
Palavras-chave: apagametos.supremacia branca. tornar-se negra. identidade.decolonialidade.
1 INTRODUÇÃO
Quando estudei História no início do século (2004 a 2008) não lembro de ter estudado “uma mulher sequer”. Não lembro de ter estudado, dentro da historiografia, mulheres que se debruçaram sobre o estudo da história. A menos que nossas professoras fizessem isso, mas, era a partir do olhar dos homens. E lembro do corpo docente do curso de história ser composto majoritariamente por homens brancos. Além do mais, a teoria ensinada ali foi a partir da escrita e de um discurso de homens brancos europeus. No mestrado a história quase se repetiu. De mulher, no estudo da história teve nossas professoras e algumas engajadas na construção de uma nova historiografia para o ensino de história, escrevendo livros inclusive, mas só tive professoras brancas.
Só agora me dei conta disso e compreendo uma certa tensão nesse percurso todo e alienação minha também. Um distanciamento. Uma não identificação, não representação. Ao longo do percurso de formação de historiadora não estudei (ainda) uma historiadora negra e penso que isso definiu muito da minha autoestima profissional e certos padrões meus, certas resistências, complexos e eu me pergunto: por que não fui atrás antes, por que não me dei conta dessa supremacia branca? Por que, lá dentro mesmo da academia, não questionei. Posso responder que fui vítima do que Frantz Fanon denominou de uma certa alienação que nem eu mesma me via como mulher negra no contexto acadêmico do qual estava inserida.
Pretendo escrever este texto como forma de elaboração dessa questão pessoal/profissional e também na tentativa de reparar esse lapso temporal de apagamento da minha negritude. Vou partir de um viés da psiquiatria, psicanálise, do feminismo negro, que foram lugares onde me dei conta dessa questão. Partirei principalmente do trabalho da psiquiatra e psicanalista negra brasileira, Neusa Santos Souza, e também do psiquiatra martinicano Frantz Fanon. Além de contribuições de Florestan Fernandes, da teórica feminista negra bell hooks e darei uma introduzida ao pensamento decolonial a partir dos pensadores Nelson Maldonado Torres, Walter Mignolo e Aníbal Quijano.
O objetivo é trazer algumas questões à tona, entre elas, a importância de uma revolucionária educação antirracista e decolonizante desde a escola, na academia e para vida. A importância do uso da palavra e da construção e posse de um discurso próprio como dispositivo de poder ser negra/negro ou poder ser quem quiser ser (e não produto da colonialidade).
2 Da crise existencial à elaboração
Em meu percurso de educadora no Estado do Mato Grosso ao longo desses últimos quatorze anos (2010 a 2024) não teve um sequer, em que as leis 10.639/2003 e/ou a 11.645/2008 não foram trabalhadas em forma de “projetos”. Muitas vezes sendo contrariada por aqueles que acham que escola é para ensinar os estudantes a apenas seguirem a apostila, responderem questões, gabaritos, etc. porque é assim que farão nos vestibulares e no Enem. A pedagogia baseada em projetos ou em aulas-oficinas, foi para mim até agora, uma forma de trabalhar fontes e histórias que não são contadas nos livros didáticos.
Esse trabalho com as leis que versam sobre a obrigatoriedade de um ensino sobre a cultura afro e indígena, não só em história, mas em outras disciplinas, foi feito até aqui com um senso de dever. Enquanto educadora, aprender sobre e ensinar sobre elementos da cultura africana e indígena é uma obrigação. Mas, algumas questões/tensões só me vieram agora em pleno 2024. Até 2021 vinha trabalhando com uma certa “naturalidade”, tranquilidade e senso de responsabilidade, cumprindo com a obrigação de professora historiadora.
O estopim do presente artigo são algumas vivências desses dois últimos anos (2022-2023), algumas experiências me fizeram parar para pensar minha prática. Geraram tensão, tiveram um impacto em minha psique. E durante minha licença prêmio me vi na necessidade existencial de elaborar melhor tais experiências no âmbito profissional que também permeiam o pessoal.
Somente ao longo dos últimos anos e no divã tenho tomado consciência, por meio da palavra, dos efeitos do racismo e do machismo em minha vida, autoestima e subjetividade. Na escola tenho percebido e experimentado situações de negação. Negação velada ou escancarada mesmo. Falas abertas ou comportamentos sutis que expressam uma certa relativização e negação do problema do racismo estrutural.
Na escola, lembro de ouvir falas vinda dos meus colegas de outras áreas, como: “preferia trabalhar o Halloween, é muito mais interessante”; “Ah, racismo não existe!”, ou de uma mulher branca dizendo: “na minha época também praticavam bullying comigo e eu sobrevivi”. Ou de um homem branco que, incomodado com meu trabalho, pelo menos me pareceu, vir me dizer: “mas fulana, na África também tinha escravidão…”. E por último, um professor branco que não aguentou me ver com um livrinho escrito Orixás, veio me questionar sobre, se eu era da religião, proferindo inúmeras falas machistas e racistas. Além de acabar escutando pelos corredores, pátio e salas de aula, de alunos meus ou da escola onde trabalho, falas estereotipadas que expressam a discriminação com qualquer coisa que fuja ao padrão. Quando vejo um aluno meu ou da escola onde trabalho chamar a mim e a meu grupo de projeto de macumbeiros porque estamos tocando um agogô e um colega meu de profissão ser conivente, me desencadeia um misto de frustração e raiva. E, se eu fosse macumbeira, qual seria o problema? Nenhum. E se eu convidasse um candomblecista para ir à escola falar sobre sua religião?
Trabalhar as leis 10.639 e 11.645 não é sobre pintar desenhos de rostos e cabelos de gente negra e indígena. Também não é sobre trabalhar o dia 20 de novembro apenas. Pegando o exemplo de ser chamada de macumbeira, trabalhar as leis seria demonstrar o que é macumba, quem é o macumbeiro e como essas expressões foram pejorativamente estereotipadas na cultura e por quê. Mas, é um trabalho que precisa ultrapassar o/a do/da professor/professora de história, falando aqui de uma escola pública de ensino fundamental. Um problema que sabemos que é estrutural precisa de ações multidisciplinares para combatê-lo.
Enfim, talvez seja importante delimitar este artigo a uma elaboração de uma experiência dentro de um percurso individual, e a uma determinada cidade e contexto cultural. Infelizmente, ainda dentro de algumas escolas, cidades, impera uma supremacia branca. Uma educação colonialista, tanto na teoria quanto na prática. Na teoria, reproduzindo textos de homens brancos europeus compilados em livros didáticos. Reproduzindo uma história única e eurocentrada:
(...) o eurocentrismo torna-se, portanto, uma metáfora para descrever a colonialidade do poder, na perspectiva da subalternidade. Da perspectiva epistemológica, o saber e as histórias locais européias foram vistos como projetos globais, desde o sonho de um Orbis universalis christianus até a crença de Hegel em uma história universal, narrada de uma perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de chegada. (MIGNOLO, 2003, p. 41)
Na prática, todo um padrão branco, sexista, racista impregnado na cultura escolar, demonstrado sutil ou escancaradamente em diferentes aspectos como na religião, na estética e nos diferentes tipos de linguagem. Em uma perspectiva de hierarquização, próprio do sistema colonial, de dominação, de subalternidade, de inferiorização da cultura do outro. Em um espaço que até dizem que deve-se respeitar a diversidade.
2.1 Trajetória histórica pós abolição e a identidade do negro no Brasil
Abolição da escravatura, 13 de maio de 1888, pessoas negras a partir daquele momento não poderiam mais, ao menos no papel, serem escravizadas, vendidas como mercadoria. Agora o preto era livre! Será? A partir daquele momento, os negros que foram libertos na lei, não por piedade, bondade da elite branca, mas porque o Brasil, último país a abolir a escravidão, não se encaixava mais no cenário externo e no novo modelo de economia, o capitalismo. A Revolução Industrial iniciada na Inglaterra alterou as formas de produção e relações sociais. A partir do século XVIII e ao longo do XIX e XX consolida-se um novo modelo de sociedade tendo em cena a burguesia e o proletariado. Muitas pessoas vieram para o Brasil no final do século XIX e início do XX, imigrantes da Europa e da Ásia, para trabalharem como mão de obra livre, assalariada, pessoas que já eram trabalhadoras livres em seus respectivos países. Já o negro teve de se adaptar como pode para exercer essa tal liberdade.
“Livre” e dentro dessa nova dinâmica do capitalismo ascendente aqui no Brasil, no meio negro há dois grupos - de um lado os que se conformavam com a “vida de negro” e, do outro, os que irão buscar sua forma de ascensão social. Alguns ou muitos não conseguirão. Como concorrer com os brancos e com aquela nova onda de imigrantes que até recebiam ajuda do Estado para se reorganizarem aqui na nova pátria? Como exercer liberdade sem condições básicas para exercê-la?
O meio negro se dividia: de um lado ficavam aqueles que se conformavam com a “vida de negro” e, do outro, os que ousavam romper com o paralelismo negro/miséria. Uns e outros hostilizavam-se reciprocamente. Os primeiros, pelo ressentimento de não “subir na vida” e pela convicção de que perderiam o antigo companheiro, que ao ascender, se afastaria do meio negro. Os outros, por um sentimento de retaliação frente à hostilidade dos primeiros e pela tendência a assimilar o discurso ideológico da democracia racial que vê o negro que não sobe como um desqualificado, do ponto de vista individual. Assim, o negro que conseguia romper com todas essas barreiras e ascender tornava-se exeção. (SOUZA, 2021, p. 51,52)
As primeiras décadas do século XX aqui no Brasil foram tanto de adequação às mudanças advindas das Revoluções Industriais (primeira e segunda) quanto de mudanças na cena política. O Brasil era uma recém nascida República e estava lidando com as questões de organização de um novo estado brasileiro, agora republicano, e de uma nova identidade nacional.
No contexto pós abolicionista e início do republicano houve, como todos sabemos, políticas de branqueamento da sociedade brasileira. O país estava muito escuro na visão das elites dominantes. O pior de tudo foi que tais políticas eugenistas encontraram respaldo na ciência. O médico, psiquiatra e professor Nina Rodrigues é um dos precursores no estudo da formação racial brasileira, embasando o racismo científico. Depois de Nina Rodrigues e nessa dinâmica de se buscar pensar e compreender o povo brasileiro tem a obra “Casa Grande e Senzala” do sociólogo, escritor pernambucano Gilberto Freyre. Freyre, e o início do mito da democracia racial, do equilíbrio, da miscigenação. Diferente do eugenismo, a miscigenação era a solução para o problema social da raça no Brasil.
O tema Escravidão no período colonial e imperial é o mais importante da história do Brasil para compreendermos as dinâmicas sociais durante e após - com a abolição - e para compreendermos a identidade do negro. Como o negro aqui no Brasil vai, ele mesmo, construir sua identidade. E, gostaria de já apresentar o recorte de gênero: como que a mulher negra vai construir sua identidade dentro dessa estrutura patriarcal, sexista e racista que começa na colônia, atravessa o império e persiste na república.
Segundo a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, “o branco, proprietário exclusivo do lugar de referência, a partir do qual o negro será definido e se definirá” (2021, p. 56). Ou seja, o negro constrói sua identidade a partir do branco, o branco é o lugar de referência para o negro. O negro quer branquear-se. “Assim é que, para se afirmar ou para se negar, o negro toma o branco como marco referencial” (2021, p. 56).
A formação do eu no “olhar” do Outro, de acordo com Lacan, inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas de representação simbólica - incluindo a leitura, a cultura e a diferença sexual. (HALL, 2002, p. 37,38)
Partindo do pressuposto que construimos nossa identidade na alteridade, a alteridade do negro é o branco e não o Outro negro. “É preciso que haja um modelo a partir do qual o indivíduo possa se constituir - um modelo ideal, perfeito ou quase. Um modelo que recupere o narcisismo original perdido” (SOUZA, p. 64). Sendo assim, o ideal de eu, ou de ego do negro é o branco:
O negro de quem estamos falando é aquele cujo ideal do ego é branco. O negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido, e que endossa a luta para realizar esse modelo. (SOUZA, 2021, p, 65)
O negro, vítima do colonialismo, quer se tornar branco, pois o branco colonizou sua mente, seus afetos, sua subjetividade. O branco aculturou o negro. O branco criou a noção de raça e ao criar dividiu, criou eles e nós. Não perguntou se o negro queria, impos. Impos sua língua, sua cultura, sua forma de trabalho, sua religião e disse que o preto era “o irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico são as principais figuras representativas do mito negro.” (SOUZA, p. 57)
A sociedade escravagista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco, e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior. (SOUZA, 2021, p. 48)
Durante a colonização o branco cria conceitos, aliás, preconceitos, discursos dos povos africanos para dominá-los, o branco define o negro. A ideia de que africano não tinha história, que eram selvagens, não tinham alma e daí o homem branco vem para salvá-los deles mesmos, para civilizá-los. Mitos que vão sendo construídos e compondo uma ideologia dominante e escamoteando o real:
O mito é uma fala, um discurso - verbal ou visual, uma forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação ou pessoa. Mas, o mito não é uma fala qualquer. É uma fala que objetiva escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história, transformá-la em “natureza”. Instrumento formal da ideologia, o mito é um efeito social que se pode entender como resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas. (SOUZA, 2021, p. 54)
A ideia justificada pela igreja de que a escravidão dos povos africanos era a punição aos filhos de Cam, por exemplo, porque o filho de Noé o viu nu e embriagado e nada fez e por isso foi amaldiçoado, a Maldição dos filhos de Cam, um mito que durante mais de três séculos violentou e oprimiu corpos, culturas e matou pessoas. Sem contar o mito de que o homem negro é a passagem do macaco para o homem branco:
“A representação do negro como elo entre o macaco e o homem branco é uma das falas míticas mais significativas de uma visão que o reduz e cristraliza à instância biológica. Essa representação exclui a entrada do negro na cadeia dos significantes, único lugar de onde é possível compartilhar do mundo simbólico e passar da biologia à história.” (SOUZA, p. 57)
Nessa conjuntura de ascensão social e mitificação do Negro, Frantz Fanon nos diz que o negro tem dois comportamentos diferentes, um com seu semelhante e outro com o branco:
O negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que esta cissiparidade é uma consequência direta da aventura colonial... E ninguém pensa em contestar que ela alimenta sua veia principal no coração das diversas teorias que fizeram do negro o meio do caminho no desenvolvimento do macaco até o homem. São evidências objetivas que dão conta da realidade. (FANON, 2008, p. 33)
Um dos instrumentos para o negro tornar-se branco é a língua. É pela linguagem, pela palavra que o negro se apropria da cultura do outro - do branco. É o caso que Fanon diz sobre os Antilhanos. “Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (FANON, p. 33)
Um negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa. Não ignoramos que esta é uma das atitudes do homem diante do Ser.* Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito. (FANON, 2008, p. 34)
Segundo Fanon, “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem” (2008, p. 50). A língua francesa aparece aqui como instrumento imperialista de dominação dos antilhanos.
Dentro do mito da democracia racial, um negro ascende, acessa os lugares brancos, fala como o branco, reza como o branco - então acessa a civilização e se “torna gente”. Quem nunca ouviu isso de alguém: “fulano tomou modo de gente”. Tornar-se gente aqui é se comportar como branco.
O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente”. (SOUZA, 2021, p, 46)
Florestan Fernandes nos mostra como o folclore brasileiro documenta em sua tradição oral a existência dessa associação de que preto não é gente:
O negro é burro de carga
O branco é inteligente
O branco só não trabalha
Porque preto não é gente
[...]
Negro é bicho safado
Tem fôlego de sete gatos
Não fica doente nunca
Esse pé de carrapato
E sobre o fenótipo do negro, quem nunca ouviu sobre o nariz de preto, ou “ainda bem que tenho um nariz europeu” que é o nariz fino da mulher e homem brancos. Florestan Fernandes, no mesmo capítulo que fala sobre Representações coletivas sobre o Negro - O Negro na Tradição oral, cita mais um exemplo do folclore:
“Deus quando fez o negro
Começou no calcanhar,
Quando chegou no nariz,
Deu ao Diabo para acabar
O Diabo tinha preguiça,
Não queria trabalhar
Deu um soco no nariz
E o acabou de esborrachar.”
Neusa Santos na introdução de seu livro Tornar-se Negro Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social diz que "exercer autonomia é possuir um discurso a respeito de si mesmo", porém o homem negro e novamente fazendo o recorte de gênero, a mulher negra ao longo da história não pode construir um discurso próprio de si e ser negra, de fato. Porque tentou o tempo todo ser branca/branco.
Ambos, Neusa Santos Souza e Frantz Fanon, em seus estudos sobre pessoas negras nas Antilhas e aqui no Brasil, possibilitam uma compreensão, elaboração e ressignificação do que em pessoas negras é diagnosticado como baixa autoestima ou complexo de inferioridade, e que passa então a ser compreendido como sofrimento psíquico produzido pelo racismo.
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. [...] Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34)
Nos dois casos, nas Antilhas e no Brasil, o colonialismo foi responsável pela colonização também das subjetividades dos africanos e pelo complexo de inferioridade.
A definição inferiorizante do negro perdurou mesmo depois da desagregação da sociedade escravocrata e da sua substituição pela sociedade capitalista, regida por uma ordem social competitiva. Negros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica deformada consequente à persistência dos padrões tradicionalistas das relações sociais. O negro era paradoxalmente enclausurado na posição de liberto: a ele cabia o papel do disciplinado - dócil, submisso e útil - , enquanto o branco agia com o autoritarismo, por vezes paternalista, que era característico da dominação senhorial. Esse lugar de inferioridade se espelhava no modo de inserção da população negra no sistema ocupacional das cidades. (SOUZA, 2021, p. 49)
Nesse processo de constituição de identidade na alteridade branca, por mais que o negro busque ser branco, busque se apossar da branquitude na linguagem, na religião, no casamento inter-racial - ele continua negro ou parafraseando o livro do Fanon, continua com suas “peles negras em máscaras brancas”. E, como diria Bia Ferreira em sua música, Cota não é esmola: “alisa o cabelo pra se sentir aceita. Mas não adianta nada, todo mundo a rejeita”.
A angústia da mulher negra é estar em conflito diante da busca pelo ideal de ego branco inalcançável e:
O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao comportamento fóbico. No negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável. (FANON, 2008, p. 59)
A estrutura social global do sujeito, aqui o sujeito negro, e a forma que ele organiza sua subjetividade, é amparada por mitos e ideologias. O mito de superioridade versus inferioridade. A ideologia delirante de supremacia branca. Um universo de significações que impactam em sua estrutura psíquica e subjetividade. No negro das Antilhas e aqui no Brasil, ocorre um processo de internalização ideológica.
A ideologia aqui é entendida como um sistema de representações, fortemente carregadas de afetos, que se manifestam na subjetividade consciente como vivências, ideias ou imagens e, no comportamento objetivo, como atitudes, condutas e discursos. A ideologia é um dispositivo social que serve aos fins de organizar um saber acerca dos mais diversos aspectos da vida humana, caracterizando-se por ser compartilhada pela comunidade como um todo, ou por um setor significativo dela, oferecendo coerência a seus integrantes em torno de crenças, fins, meios, valores, etc. (SOUZA, 2021, p. 113)
A ideologia cumpre a função de uma cosmovisão com forte conteúdo emocional, com uma função de ilusão e recursos de convicção e consensualidade, além de “conaturalidade”. Ser negra/negro então é, segundo Neusa Santos Souza:
“tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. [...] ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro, é tornar-se negro.” (SOUZA, 2021, p. 115)
O negro que ascende ou que, alienado, tenta a todo custo embranquecer, se perde dele mesmo, não sabe quem é. Não é branco, mas também não é negro. Ou não quer ser negro, se nega.
Tornar-se negro, portanto, ou consumir-se em esforços por cumprir um veredito impossível - desejo do Outro - de vir a ser branco, são as alternativas genéricas que se colocam ao negro brasileiro que responde positivamente ao apelo da ascensão social. (SOUZA, 2021, p. 115)
Exercer autonomia em uma perspectiva iluminista, pelo que parece, é emancipar-se da tutela do outro, buscar saber, ousar saber, ou buscar Ser. Partindo do discorrido neste artigo, possuir autonomia é emancipar-se do discurso do Outro. Do discurso da branquitude. Neste sentido é importante produzir rupturas com o discurso colonialista.
A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa eminentemente política - exige como condição imprescindível a contestação do modelo advindo das figuras primeiras - pais ou substitutos - que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco. Rompendo com esse modelo, o negro organiza as condições de possibilidade que lhe permitirão ter um rosto próprio. (SOUZA, 2021, p. 115 e 116)
Como que, mulheres se entendem como mulheres não a partir do olhar dos homens? E, como, mulheres e homens negros se compreendem não a partir do racismo ou da branquitude?
Por isso a importância dos movimentos sociais como o movimento negro, o feminismo, e partindo do principal escopo teórico deste artigo, a importância da psicanálise para que o sujeito, neste caso, o subalternizado, se dê conta de quem se é.
A escritora bell hooks enfatiza a importância do feminismo como movimento de libertação das mulheres
As raízes do feminismo visionário se estendem desde o início dos anos de 1960. Bem no começo do movimento de libertação da mulher, pensadoras visionárias estavam presentes, sonhando com um movimento político radical/revolucionário que iria, em seu estágio reformista, garantir às mulheres direitos civis dentro do já existente sistema patriarcal capitalista de supremacia branca. (hooks, 2023, p. 157)
O feminismo negro como um movimento social que combate a opressão sexista e a discriminação baseada em raça e gênero, é um dispositivo importante para mulheres negras se reconhecerem e garantirem seus direitos (2023, p. 161).
Ao enfatizar a importância do feminismo negro, hooks diz que:
Como uma pensadora feminista negra, acredito ser essencial avaliar criticamente os papéis dos gêneros na vida dos negros, para descobrir as preocupações específicas e as estratégias que devem ser abordadas para que todas as pessoas negras possam compreender a relevância da luta feminista para nossa vida. (2023, p. 165)
A pensadora enfatiza ainda que o movimento feminista negro “têm por objetivo acabar com a dominação e nos libertar para que sejamos quem somos - para viver a vida em um lugar onde amamos a justiça, onde poderemos viver em paz” (2023. p. 167).
Quando falamos de colonização, vem à mente dominação e exploração. Colonizar vem de dominar terras, territórios, controlar a natureza, explorar populações, catequizar pessoas. A colonização do século XVI ao XIX está a serviço do mercantilismo e depois do capitalismo e da acumulação. Dominar a natureza, se dissociar dela. Dominar pessoas, seus corpos e seus saberes. Foi o que os europeus fizeram com as Áfricas e aqui nas Américas, sem esquecer da Ásia e Oceania.
Mas, há que se distinguir colonialismo de colonialidade, segundo Quijano:
O Colonialismo é, obviamente, mais antigo; no entanto a colonialidade provou ser, nos últimos 500 anos, mais profunda e duradoura que o colonialismo. Porém, sem dúvida, foi forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser imposta à inter-subjetividade de modo tão enraizado e prolongado. (QUIJANO, 2007, p. 93)
Nelson Maldonado-Torres (2007) afirma:
Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).
Parece que desobedecer a colonialidade é a regra, se quisermos (re)humanizar e dar autonomia, por meio da palavra, aos povos que foram subalternizados historicamente. Se ao negro colonizado coube, mesmo ao fim do colonialismo o papel de disciplinado, dócil, submisso e útil, agora, por meio dos movimentos sociais, da contestação e principalmente da palavra, cabe à negra, ao negro, aos indígenas e afins - a desobediência à colonialidade, à supremacia branca, à epistemologia eurocentrada.
E, o exercício de uma epistemologia decolonial que consiste no:
conjunto dos conhecimentos nascidos na luta, nas lutas anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais, lutas das mulheres, dos povos quilombolas, dos povos indígenas, dos povos colonizados, dos trabalhadores, que ao lutarem sempre usaram e produziram conhecimentos e esses conhecimentos nunca foram reconhecidos como tal. Portanto, é uma tentativa de captar esse processo de conhecimento que nasce na própria luta e no viver na luta contra a opressão”. (SANTOS, 2020).
O exercício decolonial ao mesmo tempo que é coletivo é individual. Exercício de “descolonizar” os pensamentos, emoções, nossas subjetividades, nossos afetos e o trabalho de resgatar e reorganizar uma nova e ancestral epistemologia. Nova no sentido de contarmos a nossa própria história e ancestral no sentido de buscarmos enraizamentos.
3 Considerações finais
E, voltando para a escola, enquanto espaço segundo ou terceiro, depois da família, da igreja ou da comunidade - onde o sujeito constitui sua identidade na alteridade. Espaço da diversidade. A escola tem um papel fundamental para a construção de discursos não únicos e exercício de autonomia, de emancipação do sujeito. Porém, é um problema quando a escola trabalha com “apagamentos”. Quando silencia populações e manifestações culturais. Ela silencia quando privilegia uma cultura em detrimento da outra. Quando nega racismos. Quando nem toca no assunto.
Como eu gostaria de ter tido uma professora que tivesse me falado de autoras negras no ensino fundamental ainda, um professor que tivesse me falado de historiadoras negras. Um professor africanista na faculdade de história. Uma epistemologia africana, asiática, ao invés de uma filosofia apenas ocidental. Uma explicação dos Orixás. Uma cosmogonia indígena e não só grega e romana.
Mas, este artigo já é, além de exercício de conscientização, uma construção de um discurso decolonial de uma professora que se deu conta de ser negra bem depois da academia e que agora deseja falar.
REFERÊNCIAS
Decolonialidade do saber: as ecologias dos saberes na produção do conhecimento: https://www.scielo.br/j/rk/a/csc6FRBDPnz4Y6FMkkwtCGt/?format=pdf. Acesso em 12/03/2024.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. 2008.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difel, 1972.
HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: 2023.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.) El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 127-167.
Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/TXxbbM6FwLJyh9G9tqvQp4v/. Acesso em 12/03/2024.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 93-126.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
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